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Investigação independente revela graves violações de direitos por empresas cúmplices do regime

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Simbiose. A Aracruz Celulose e a Fiat receberam incentivos fiscais do regime e em troca espionaram os funcionários em parceria com os órgãos de repressão. Na montadora instalada em Betim, Minas Gerais, funcionava uma sala de interrogatório – Imagem: Suzano Papel e Celulose e FIAT
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O termo de ajustamento de conduta proposto em 2020 pelo Ministério Público à Volkswagen, reparação à cumplicidade da montadora alemã com os órgãos de repressão durante a ditadura, rendeu frutos. Parte do dinheiro pago pela multinacional acabou revertido para o projeto “A Responsabilidade de Empresas por Violações de Direitos Durante a Ditadura”. Coordenado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo, o levantamento investiga desde então dez companhias colaboracionistas: Aracruz, Cobrasma, Companhia Siderúrgica Nacional, Docas de Santos, Fiat, Folha de S. Paulo, Itaipu, Josapar, Paranapanema e Petrobras.

Divulgados no início de junho, os resultados apontam violações de direitos trabalhistas, danos à saúde em decorrência de trabalhos insalubres, repressão (impedimento de organização de funcionários e direito à greve), vigilância de trabalhadores e produção de “listas sujas” para impedi-los de encontrar novos empregos, prisões ilegais e ocultações de paradeiro às famílias, tortura, violência sexual, morte de trabalhadores, discriminação racial ou de gênero. Entre os crimes contra povos indígenas, quilombolas ou camponeses, há esbulho de terras, destruição das lavouras ou produção, trabalho escravo ou infantil, tortura e mortes e desaparecimentos, entre outros.

A cooperação com a ditadura foi lucrativa para as corporações. A Aracruz Celulose foi beneficiada por uma lei florestal rascunhada por Antônio Dias Leite Jr., ministro das Minas e Energia entre 1969 e 1974 que viraria sócio do empreendimento. Por causa da lei, indígenas teriam sido expulsos pela Funai dos territórios repassados à empresa. Houve redução e extinção de aldeias e comunidades, descreve o relatório, além de contaminação do meio ambiente, perseguições e violações de direitos de trabalhadores e o uso de trabalho análogo à escravidão.

Em uma primeira fase, o levantamento focou dez companhias, nacionais e estrangeiras

A Companhia Brasileira de Material Ferroviário (Cobrasma) manteve conexões estreitas com a ditadura. Integrantes da família Vidigal, principal acionista da companhia, participaram do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e outras organizações criadas para fomentar o golpe e financiar a Operação Bandeirante, de caça e eliminação de opositores do regime. A siderúrgica construiu carros blindados para o aparato repressivo, enquanto funcionários e diretores se tornaram colaboradores da ditadura, entre eles o legista Harry Shibata, famoso por falsificar laudos de óbitos de presos políticos. Presidente da Cobrasma, Gastão Mesquita Filho também comandava o Banco Mercantil, responsável pelo pagamento de agentes da repressão. A atuação colaborativa incluía a confecção de listas sujas, o envio de informações sobre lideranças sindicais e grevistas à repressão, a remessa de lista de candidatos a empregos para apuro de informações e a contribuição para a caracterização da greve de Osasco de 1968 como atividade subversiva.

A Companhia Siderúrgica Nacional, então estatal, teve papel ativo na repressão política em Volta Redonda: trabalhadores que se opuseram ao golpe foram desligados da empresa e dezenas foram presos nos meses subsequentes. Os sindicatos foram alvo de intervenção, com invasão de suas sedes e apreensão de documentos. Ao longo do tempo, a instalação de um sistema de vigilância de trabalhadores colaborou com muitas prisões – boa parte dos detidos foi submetida a torturas. A pesquisa identificou a prática de racismo institucional, com a exposição de trabalhadores negros a condições de trabalho mais exaustivas e prejudiciais à saúde, e intoxicação por benzeno dos operários de fornos e coqueria.

Chapa branca. O grupo Folha fornecia kombis à Operação Bandeirante. A Folha da Tarde, “órgão oficial” da ditadura, empregava policiais e agentes da repressão – Imagem: Webysther

A Companhia Docas de Santos manteve um aparato de vigilância e repressão por meio do Departamento de Vigilância Interna, com atuação de caráter policial e troca de informações com os órgãos de repressão, para além dos limites da fábrica. A prática de repressão incluía prisões, violências e humilhações. O impacto na vida dos trabalhadores resultou em mortes súbitas, devido ao excesso de esforço no trabalho, suicídios, alcoolismo, depressão e transtornos de ansiedade.

Para se instalar em Betim, Minas Gerais, a Fiat recebeu benesses fiscais. Em contrapartida, a montadora italiana estruturou um sistema complexo de vigilância sobre seus funcionários, cujas informações eram repassadas aos órgãos de repressão. O processo contou com a utilização de agentes policiais em ações repressivas, na fábrica e até mesmo na residência dos empregados. Há relatos sobre a existência de um espaço, chamado “sala de corpo de bombeiros”, no qual trabalhadores eram constrangidos a “delatar”, mediante ameaças e agressões. O operário Guido Leão Santos morreu atropelado quando fugia de repressão policial a mando da empresa.

A Folha de S. Paulo se expandiu durante a ditadura e tornou-se um conglomerado­ do setor jornalístico. Sob a administração de Octávio Frias e Carlos Caldeira, o grupo adquiriu empresas em dificuldades econômicas ou perseguidas pelos militares, entre eles o jornal Última Hora, a TV ­Excelsior e a Fundação Cásper Libero. Frias foi sócio do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e Caldeira acabaria nomeado prefeito “biônico” de Santos em 1979. A empresa manteve agentes da repressão, militares e policiais no quadro de funcionários e adotou posição favorável ao regime, com sustentação editorial, autocensura e controle interno das informações. A Folha da Tarde, uma das publicações do grupo, era considerada o jornal “oficial” do regime. O grupo colaborou diretamente com os aparatos repressivos ao ceder kombis de entrega de jornais para ações da Operação Bandeirante. A pesquisa identificou perseguição a jornalistas em razão de suas atividades políticas.

Boa parte das companhias investigadas espionava funcionários a pedido dos órgãos de repressão

A usina hidrelétrica Itaipu foi criada durante a ditadura. A construção, a partir de 1975, escorou-se em extensas jornadas de trabalho e atuação em condições perigosas, como a suspensão de trabalhadores em alturas elevadas sem equipamento adequado de segurança, e acidentes de trabalho, alguns fatais. Para a realização das obras, foram estabelecidas vilas habitacionais para a moradia dos trabalhadores, nas quais havia intenso controle e vigilância. A represa levou ao deslocamento de 40 mil habitantes. Grupos mais vulneráveis, entre eles os Ava-Guarani, foram particularmente prejudicados.

Empresa de agronegócio sediada no Rio Grande do Sul, com filiais em diversas regiões do País, a Josapar, conhecida pela marca Tio João, adquiriu terras no Mato Grosso, Goiás e Pará e desfrutou de benefícios do Estado. Associada ao banco Denasa, a indústria está no centro de um grave e violento conflito de terras no Pará. O consórcio constituiu uma “guarda de segurança” composta por pistoleiros, que passou a realizar ameaças, invasão de casas, destruição de plantações, perseguição, tortura, estupro e assassinato de lideranças. Especialmente entre 1981 e 1984, a milícia privada contou com o apoio de agentes do Estado – policiais militares e agentes do DOPS. Muitas famílias se viram forçadas a deixar a região. A tática antiguerrilha envolvia sobrevoo de helicópteros sobre a população, alvo de rajadas de metralhadora.

Por conta própria. Na Companhia Docas de Santos, o Departamento de Vigilância Iterna emulava o Dops – Imagem: iStockphoto

Com atuação em construção civil, engenharia, petroquímica, mineração e metalurgia, a Paranapanema manteve acionistas e aliados em cargos de Estado e também militares entre seus funcionários. Empreiteira da construção da Transamazônica, praticou esbulhos de terras indígenas, uso de trabalho indígena em condições análogas à escravidão, degradação do meio ambiente e graves impactos sobre os modos de vida, além da disseminação do consumo de álcool e de doenças e a uma desestruturação étnico-cultural, especialmente dos povos Kagwahiva. Na construção da BR-174, entre Manaus e Boa Vista, os Waimiri Atroari que resistiram foram reprimidos com violência pelas Forças Armadas. Há indícios de que napalm, arma química disseminada pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã, tenha sido jogada sobre a população. A partir de 1977, a Parapanema passou a operar no território e teria se valido de uma fraude cartográfica em prejuízo dos indígenas.

Comandada por militares, a Petrobras instaurou inquéritos contra trabalhadores, integrou “comunidades de informações” formada por empresários e agentes da repressão e forneceu infraestrutura às Forças Armadas. Um grande número de trabalhadores foi preso e algumas detenções ocorreram nas dependências da empresa. Com frequência, as prisões não eram comunicadas às famílias e os presos eram submetidos à tortura. Além de trabalhadores, advogados e ex-empregados eram igualmente perseguidos. A equipe identificou a criação de “listas sujas”, subnotificação de acidentes de trabalho e violação à liberdade sindical, além da responsabilidade da petroleira em crimes ambientais que prejudicaram sobretudo povos indígenas da Amazônia.

O Ministério Público destacou um procurador para casa caso. Alguns inquéritos foram abertos. Neste ano, o grupo iniciou a investigação de outras três empresas: ­Belgo-Mineira, Embraer e Mannesmann. •

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

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