Cultura
Das comédias ao mundo zen
Bruno Wainer, o grande vendedor de ingressos do cinema brasileiro, mira o mercado de nicho ao se lançar no streaming


O primeiro título que Bruno Wainer colocou nas salas de cinema do Brasil foi Delicatessen (1991), um filme de arte francês. Esse lançamento, feito numa época na qual o circuito independente tinha mais musculatura, marcaria também a criação de sua primeira empresa de distribuição de filmes, a Lumière.
Além de lançar no País os títulos da Miramax – então em sua era de ouro –, a Lumière colocou nas telas produções brasileiras que causaram barulho, como Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002) e Os Normais (2003).
Em 2006, quando a cinematografia brasileira começava a entrar em um ciclo de crescimento e a produção independente norte-americana a dar sinais de fadiga, Wainer criou a Downtown, dedicada a distribuir longas-metragens nacionais. Não demorou para que se tornasse líder na venda de ingressos.
Foram lançados pela Downtown – que passou a atuar em parceria com a Paris Filmes em 2011 –, por exemplo, as franquias Minha Mãe É Uma Peça e De Pernas Pro Ar, os dois longas-metragens da Turma da Mônica e Farofeiros (2018). O consórcio formado pelas duas empresas concentrou, em alguns anos, 80% da bilheteria de filmes brasileiros.
No digital. A plataforma Aquarius, em funcionamento desde a semana passada, reúne produções voltadas à “saúde do corpo e da mente” e às questões ambientais
Soa, por isso tudo, um tanto dissonante na trajetória de Wainer o anúncio da plataforma Aquarius, focada em filmes que tratam “da saúde do corpo, da mente e do meio ambiente” e que, na contramão das comédias populares, atuará no mercado de nicho.
Os eventos de lançamento do serviço de streaming acontecem na segunda-feira 26 e na terça-feira 27 no Rio e em São Paulo, com a pré-estreia do documentário Eu, dirigido pela atriz Ludmila Dayer, portadora de esclerose múltipla.
CartaCapital: No material de divulgação da Aquarius, você fala da motivação pessoal para criar a plataforma. Conta ter vivido um momento de angústia durante a pandemia e cita o quanto esse tipo de conteúdo que a plataforma vai disponibilizar o ajudou nessa fase. Mas, e do ponto de vista de negócio, o que você viu aí?
Bruno Wainer: Em primeiro lugar, a tendência dos nichos. Mas, além disso, os anos vão passando e a gente começa a entender melhor o nosso lugar no mundo. Acho que uma das coisas que explica o sucesso da Downtown é um certo faro que tenho para captar o desejo coletivo. Estou a 500 mil ingressos de 200 milhões de ingressos vendidos, sendo quase 170 milhões de filmes brasileiros. E eu fiz isso com um produto que ninguém queria: o cinema brasileiro popular. A imprensa despreza esse tipo de filme, o público tem preconceito e o exibidor se sente incomodado. E nossos concorrentes são mega corporações (as majors de Hollywood), com um poder financeiro gigantesco. As condições para se trabalhar com cinema brasileiro são tão adversas que, se eu tivesse pensado demais, não teria feito nada. No momento em que lancei a Downtown, tive um insight. Acho que, desta vez, no meio de um processo muito pessoal, talvez tenha tido outro: se isso tudo está me impactando tanto, será que não vai impactar os outros também? Chegamos num ponto de esgotamento dos recursos naturais, e o tema de como salvar este planeta, e nos salvarmos, é a grande questão do momento.
CC: Você começou a acessar esse conteúdo ligado a bem-estar, meditação, no próprio streaming?
BW: Eu descobri uma plataforma chamada Gaia, voltada ao que se pode chamar de expansão da consciência. Ela está presente em 180 países, gira em torno de 800 mil assinantes e tem números sólidos de faturamento. Mas a criação da Aquarius não foi uma decisão fria, calculada, assim como não tinha sido a decisão de criar a Downtown.
“A morte do Paulo Gustavo acabou por simbolizar a morte de um ciclo do audiovisual”
CC: Mas a Downtown também nasce num momento no qual um certo modelo de distribuição estava em crise, não?
BW: A Lumière passava por um momento difícil, e eu estava esperando um filme que pudesse nos salvar. E o filme era Todo Mundo em Pânico 2. Quando chegou a cópia, vi que o filme era tão, tão ruim, que pensei: “Não é possível que eu precise contar com esse lixo para salvar as contas da distribuidora. Não é possível que eu trabalhe para isso”. Ali, resolvi abandonar o modelo tradicional de distribuidora que comprava filmes estrangeiros e, no fim, transformei a Downtown na grande distribuidora brasileira. Minha motivação era a defesa do cinema brasileiro popular. Porque aqui não podemos falar em cinema comercial, né? No Brasil, o orçamento de um filme comercial é igual ao de um filme não comercial. Nos Estados Unidos é 40, 30 vezes maior. Aqui, não só o orçamento como as fontes de recursos são os mesmos. A trágica morte do Paulo Gustavo acabou por simbolizar também a morte de um ciclo do audiovisual. A pandemia marcou o fim do audiovisual no universo analógico.
CC: E por isso você migra agora para o digital.
BW: Não pensei racionalmente, mas estou me renovando, estou motivado a trabalhar nesse novo lugar, que é o do digital. Obviamente, nada acaba de forma abrupta, e o modelo analógico está convivendo com o digital. Mas está tudo embaralhado. E, ao mesmo tempo, seguem lá os editais da Ancine (Agência Nacional do Cinema), as comissões, a luta política, as definições de como vai se dividir a verba, a discussão entre o cinema como indústria ou cultura. Na minha motivação pessoal, essa discussão está ultrapassada. Olho para a Aquarius e penso: se esse negócio der certo, não dependo de mais ninguém e, na verdade, nem de mim. A Downtown depende de mim. A Aquarius, não. E o projeto tem chamado a atenção de muita gente. Porque são vários os modelos que desmoronaram. O da TV Globo é um deles, e temos talentos incríveis em busca de novos caminhos.
Estratégias. O documentário Eu, dirigido pela atriz Ludmila Dayer, é um dos destaques da plataforma e terá uma pré-estreia nas salas de cinema – Imagem: Fernanda Souza
CC: Pode-se dizer que o próprio modelo do streaming está em xeque?
BW: As grandes corporações criaram uma armadilha para elas mesmas. As decisões que levaram as majors a montar as próprias plataformas criaram as dificuldades que elas vivem agora. Quando a Netflix surgiu, as majors vendiam para ela seu conteúdo. Ao entregar seu ouro para uma plataforma, as majors mataram o modelo de aluguel e compra de filmes e desvalorizaram assim o seu próprio conteúdo. Depois disso, lançaram suas plataformas e, então, a Netflix se viu obrigada a produzir também. Hoje, todas estão presas à lógica capitalista selvagem: muito assinante, crescimento contínuo, bônus para executivos, retorno para os investidores. Pessoalmente, acredito que um caminho mais sustentável talvez seja o do nicho, ou seja, de plataformas que têm muito bem definida a identidade do conteúdo disponibilizado. Você tem de identificar o seu público inicial, acreditando que pode ampliá-lo, é claro.
CC: Como tem sido o processo de lançamento de um produto de nicho para quem se acostumou a buscar os milhões de ingressos?
BW: Estou sendo obrigado a reprogramar minha cabeça. Até porque o lançamento de uma plataforma não é igual ao de um filme, em que o sucesso é definido na quinta-feira de estreia. Racionalmente, já entendi isso. Emocionalmente, estou fazendo a transição. Sei que precisamos de um tempo para a chamada conversão, que é fazer com que a pessoa que se interessou, assine. Depois, ao longo da trajetória, são dois os focos principais: atrair novos assinantes e manter os existentes.
“Ao entregar seu ouro para a Netflix, as majors desvalorizaram o próprio conteúdo”
CC: Em 2020, o ano em que a pandemia começou, Minha Mãe É Uma Peça 3 se tornou o novo recordista de público do cinema brasileiro. Na nova configuração do mercado, é possível que um filme da Downtown volte a fazer 10 mihões de ingressos?
BW: Tudo é possível, né? Mas, já há algum tempo, a sala de cinema vem se transformando em um lugar para filmes-evento. Depois da pandemia, o público voltou, mas voltou ainda mais concentrado em menos filmes. O cinema brasileiro, e várias cinematografias locais, foram capturadas pelo streaming. O próprio Paulo Gustavo estava comprometido com o streaming: tinha fechado um seriado com Globoplay e assinado um contrato com a Amazon Prime. Mas vamos ver. Não quero ser o arauto do apocalipse. Ainda tenho a esperança de que a experiência coletiva prevaleça. •
Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.
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