Economia
É coisa nossa
O governo retira da OMC a abertura a estrangeiros e prioriza as empresas nacionais


A reunião entre Lula e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em Brasília, em torno de uma possível finalização neste ano do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, aparentemente deixou em segundo plano um tema crucial ao debate sobre a reindustrialização do País: o acesso ou não de companhias estrangeiras às compras governamentais. Em seu discurso, Leyen celebrou a volta do Brasil à diplomacia internacional, reiterou a importância da Amazônia e dos direitos dos povos indígenas e citou as possíveis sanções que a UE deseja impor no tratado em caso de descumprimento de cláusulas de proteção ambiental. Os tópicos parecem, no entanto, uma cortina de fumaça para dissimular o interesse central dos europeus, de manter a estrutura de um acordo benéfico aos setores mais competitivos dos dois lados do Atlântico, as fábricas europeias e o agronegócio brasileiro, em detrimento da indústria local.
O governo está ciente do caráter decisivo da questão, tanto que, dias antes do encontro, anunciou a retirada da oferta, feita pelo governo Bolsonaro na Organização Mundial do Comércio, da abertura a estrangeiros em compras públicas. A decisão está correta, analisa o diplomata Rodrigo Estrela, chefe da Assessoria Internacional do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. A pasta é a responsável pelas compras públicas no governo federal, por implementar a nova lei de licitações e ainda, em coordenação com o Itamaraty, pelas negociações de acordos internacionais sobre compras governamentais. “Além de extremamente abrangente, por abrir as licitações de estados, municípios e estatais e também as concessões, a oferta que o Brasil retirou do Global Procurement Agreement, na Organização Mundial do Comércio, restringia sobremaneira instrumentos importantes para nossa política de neoindustrialização e transição verde. O uso desses instrumentos, tais como a aplicação de margens de preferência, compensações (offsets) comerciais, industriais e tecnológicas e conteúdo local, ficava proibido ou severamente limitado”, explica.
A oferta do Brasil feita no âmbito do acordo Mercosul–União Europeia é tão restritiva, entretanto, quanto a da OMC, do ponto de vista das políticas públicas, acrescenta o assessor. “Em margens de preferência é até mais restritiva que aquela da OMC. É uma questão de coerência, agora que retiramos a oferta feita nesse organismo, modificarmos a oferta do Brasil à União Europeia em 2019”, sublinha Estrela. A margem de preferência assegura que, em uma licitação vencida por fornecedor estrangeiro por uma pequena margem, dê-se preferência à empresa nacional com um preço um pouco maior. O mecanismo visa estimular a indústria instalada no País. “Especificamente no que diz respeito a compras governamentais na OMC, o Brasil, ao retirar sua oferta nas negociações em curso, tem a oportunidade de melhor avaliar como a política de compras públicas pode ser empregada como uma ferramenta a favor da política industrial, o que, aliás, vários países mundo afora têm feito”, concorda Tatiana Prazeres, secretária de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Vale lembrar, acrescenta, que o comércio exterior tem um papel fundamental no desenvolvimento econômico, inclusive do setor industrial. E que uma política industrial bem-sucedida deve contribuir para a inserção competitiva do Brasil na economia internacional.
O uso do poder do Estado como instrumento de política industrial é dominante no cenário externo
Longe de ser uma exceção, portanto, o uso do poder de compra do Estado como instrumento de política industrial é dominante no cenário internacional, reforça Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. Essa prática, especialmente para acelerar inovação e para dar escala à produção de novos produtos, serviços e técnicas de produção, está em voga no cenário internacional. “O caso paradigmático é o dos EUA, que desde 2021 vem reforçando a efetividade do Buy American Act para ampliar o conteúdo nacional das compras governamentais, e no Inflation Reduction Act de 2022 voltou a insistir em exigências de conteúdo nacional, para descontentamento dos europeus. Tudo isso em um conveniente contexto de esvaziamento do sistema de resolução de controvérsias da OMC pelos EUA.”
As compras governamentais são instrumentos clássicos de políticas de desenvolvimento e, como o MDIC acaba de definir sete grandes missões que orientarão as políticas de competitividade – industrial, comercial e de inovação –, torna-se relevante contar com a possibilidade de utilizar o poder de compra governamental para incrementar a industrialização, ou neoindustrialização, como vem sendo definida, ressalta Antonio Corrêa de Lacerda, professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da PUC de São Paulo e integrante da Comissão de Estudos Estratégicos do BNDES. “Há claramente uma tendência global no sentido da reindustrialização. A pandemia desnudou a fragilidade das supostas cadeias globais de valor e até os mais liberais admitem a necessidade de uma indústria forte e inovadora. O Brasil não pode chegar atrasado nessa corrida”, destaca Estrela. As compras governamentais constituem cerca de 15% do PIB, numa estimativa conservadora. “São um dos mais poderosos estímulos para o crescimento, inovação e para a relocalização da indústria global no Brasil. Não podemos prescindir de seus instrumentos.”
Futuro. O poder de compra do Estado será fundamental na transição da economia verde e na melhora dos serviços de saúde, cujas fragilidades foram escancaradas pela pandemia – Imagem: Rhett Butler e Breno Esaki/SS/GOVDF
O caso do SUS é emblemático, a sua sustentabilidade econômica depende da capacidade produtiva do complexo econômico-industrial da Saúde, mas também de sua inovação. Não só no setor de saúde, contudo, há necessidade de inovação, ela é necessária também para se avançar na “transição verde”, nos setores de alta tecnologia, acrescenta Estrela.
O acordo Mercosul–UE é considerado muito desequilibrado, desde o início, por partir do pressuposto de que se entregava a indústria brasileira em troca do agronegócio, e piorou desde 2019, ano em que foi formalizado. A equipe de Bolsonaro tinha a ideia de que entrar nos acordos conduziria, automaticamente, a uma certa eficiência e, portanto, não haveria problema em ceder em todos os pontos importantes. Essa visão ultrapassada ainda sobrevive, segundo alguns analistas, em setores do atual governo.
A possibilidade do uso de compras governamentais para fomentar a indústria local é um dos últimos limites relacionados ao mundo das negociações comerciais internacionais, terreno em que o Brasil cedeu muito, e há muito tempo, em quase todos os outros pontos, ou eles estão regulados desde a rodada Uruguai, apontam especialistas. As compras governamentais são consideradas “a última muralha” de defesa de um mínimo de autonomia para o Brasil estimular tanto a indústria instalada quanto o Investimento Externo Direto que inova no País.
Primeiro, o Brasil baixou as tarifas de importação, o que desprotegeu parte significativa da indústria nacional. Em seguida, proibiu os subsídios, e depois as políticas de conteúdo local. Para completar, fez concessões ilimitadas em propriedade intelectual. Não foi uma exclusividade brasileira e correspondeu a um momento no qual o neoliberalismo anulou os países da América Latina, ao contrário do que aconteceu com várias nações asiáticas.
O Brasil não pode chegar atrasado na corrida pela reindustrialização
As negociações deverão, contudo, prosseguir e talvez a Comissão Europeia aceite algumas exigências do governo brasileiro, mas a chance de o acordo ser assinado pelo conjunto dos países integrantes da União Europeia é considerada remota. Na terça-feira 13, a Assembleia Nacional da França aprovou uma resolução contrária ao acordo. Os termos atuais são piores do que no início das tratativas, não apenas por conta dos recuos no governo anterior, mas porque a cada dia as condições de acesso ficam mais restritivas ao agronegócio. O motivo são as seguidas medidas tomadas pelos europeus para fechar os seus mercados agrícolas, a partir da justificativa ambiental, para os produtos brasileiros.
Especialistas no tema defendem a reavaliação de alguns elementos da negociação, a exemplo das compras governamentais, tema abordado com frequência por Lula. O atual formato é considerado anacrônico, fruto da última fase da geração passada de acordos comerciais internacionais. Hoje quaisquer negociações de um grande acordo de comércio internacional contemplariam termos mais propícios à reindustrialização e à criação de empregos locais, ponderam estudiosos do assunto.
O encontro de Lula e Leyen é mais um episódio da política externa do governo, marcada por multilateralismo, tomada de posição em favor do Sul global, viagens e acordos de grande repercussão, mas que é alvo de críticas, entretanto, da oposição e até de parte dos apoiadores do governo, que classificam as ações do presidente como desvio de foco, por dispor de menos tempo para os assuntos internos. Um equívoco, ressalta Lacerda. A inserção externa, sublinha o economista, deve fazer parte de um projeto de desenvolvimento. O principal, nesse sentido, é o retorno à condição de potência emergente, nos campos econômico, geopolítico, ambiental e social. Essa retomada demonstra resultados concretos em poucos meses, como os aportes internacionais ao Fundo Amazônia e outros efeitos. “No aspecto econômico amplo, tanto do ponto de vista das exportações, quanto investimentos e intercâmbio tecnológico, a evolução é evidente. Assim, não se trata de priorizar os esforços externos em detrimento dos internos, pois não é possível estabelecer uma clara fronteira entre ambos quando se trata das questões de desenvolvimento em uma economia global em profunda transformação”, destaca Lacerda. •
Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘É coisa nossa’
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