Mundo

assine e leia

Bola da vez

O ex-guerrilheiro Gustavo Petro mobiliza as ruas contra as denúncias que ameaçam seu mandato

Bola da vez
Bola da vez
Resposta. Acuado por um Congresso hostil e por investigações de corrupção, Petro fia-se no apoio popular – Imagem: Juan Barreto/AFP e Raul Arboleda/AFP
Apoie Siga-nos no

Só um “milagre” teria o condão de arrefecer o clima tenso e unir uma Colômbia dividida e ele aconteceu no sábado 10. Por ora, a crise política que ameaça o curto mandato de Gustavo Petro foi suplantada pela comoção nacional diante do resgaste dos quatro irmãos perdidos na selva durante 40 dias. Lesly Mucutuy, de 13 anos, Soleiny, de 9, Tien, de 4, e o bebê Cristin, de 11 meses, vagaram pela floresta após a queda do avião que os levava ao encontro do pai e sobreviveram à base de farinha de mandioca, sementes e frutas silvestres. São muitas as camadas da tragédia: as crianças tiveram de mover o corpo da mãe para salvar Cristin e o voo marcaria o reencontro da família com o pai, obrigado a fugir da aldeia amazônica de Araracuara para escapar da perseguição de guerrilheiros, flagelo de difícil solução. Em uma coincidência que só o mais criativo roteirista poderia imaginar, Petro havia assinado em Havana na sexta-feira 9, véspera do resgaste, um acordo de cessar-fogo temporário de seis meses com Antonio Garcia, líder do Exército de Libertação Nacional, uma das mais antigas guerrilhas – boa notícia para o governo em uma semana turbulenta.

De volta ao país e ainda no sábado, o presidente colombiano visitou os irmãos em um hospital de Bogotá. A resistência das crianças, lideradas pela obstinada Lesly, guarda um paralelo com o esforço de Petro para sobreviver à investida da oposição. Há dez meses no poder, o ex-guerrilheiro e primeiro líder assumidamente de esquerda a ocupar o Palácio de Nariño tornou-se alvo de uma campanha de desestabilização semelhante àquela em outros países da região. O estopim foi a divulgação pela revista A Semana de diálogos comprometedores entre Laura ­Sarabia, chefe de gabinete de Petro, e Armando Benedetti, chefe da campanha eleitoral e embaixador na Venezuela – ambos demitidos na esteira do escândalo. Nas conversas, recheadas de palavrões, Benedetti ameaça revelar um suposto financiamento ilegal do então candidato de 15 bilhões de pesos, o equivalente a 17 milhões de reais. Ressentido por aparentemente ter sido relegado a segundo plano na administração, o então embaixador foi direto: “Eu não estava te ameaçando, mas estou te ameaçando agora, filho da puta, tanto você quanto o presidente, entendeu? Se você quiser que eu a ameace, vou sair e revelar tudo o que sei, o suficiente para acabar com o seu mundo e o meu. Vamos todos cair. Todos estaremos acabados. Iremos para a cadeia”. Benedetti nega as acusações e diz que os áudios foram adulterados. O Ministério Público abriu investigação. Por conta das denúncias, o Congresso, onde o Executivo perdeu a maioria após partidos de centro-esquerda abandonarem a coligação denominada de Pacto Histórico, decidiu interromper “até o esclarecimento dos fatos” a tramitação das reformas nas áreas de saúde, trabalho e previdência, pilares do projeto de viés progressista.

O resgate dos quatro irmãos na floresta deu uma trégua à crise política

Petro parece ao menos ter aprendido a lição com duas experiências recentes na vizinhança. No Peru, Pedro Castillo, alvo de três processos de impeachment, afastou-se das bases sociais e cedeu à chantagem da direita a cada estocada. Quando percebeu o erro da estratégia e a fome insaciável dos adversários, era tarde demais. Castillo tentou virar a mesa em dezembro: decretou a dissolução do Parlamento no dia da votação de mais uma ação de impedimento, mas, isolado, acabou destituído e preso. No Chile, o jovem Gabriel Boric, em nome de uma pretensa modernização do pensamento de esquerda, alinhou-se ao centro-direita e abriu mão de propostas caras ao campo progressista e motores das manifestações de 2019 e 2020. A moderação não lhe caiu bem. Boric não corre o risco de perder o mandato precocemente como Castillo, mas amarga índices decepcionantes de popularidade e viu os saudosistas do ditador Augusto Pinochet conquistarem a maioria das cadeiras da nova Assembleia Constituinte. Os chilenos vivem agora sob a ameaça de aprovar uma Constituição mais retrógrada do que a atual. E as chances de a esquerda manter a presidência em um país sem reeleição tornaram-se escassas. O colombiano, ao contrário, preferiu apostar na mobilização popular. Na quarta-feira 7, no ápice da crise midiática, eleitores de Petro lotaram as ruas de Bogotá e de mais 200 cidades e vilarejos. “Há quem ainda não entendeu o significado da decisão eleitoral do ano passado”, discursou o mandatário à multidão na capital. “Acham que foi um delírio que passou e deixou um presidente abandonado no palácio. Então hoje dizemos com toda clareza: não foi assim. O povo que elegeu o presidente segue com o presidente e ambos querem colocar em prática o programa eleito.”

Lideranças internacionais também se mobilizaram em defesa de Petro. Em uma carta conjunta, Adolfo Pérez Esquivel, ­Nobel da Paz, Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista inglês, Gleisi ­Hoffmann, presidente do PT, e João Pimenta Lopes, deputado do Parlamento Europeu, entre outros, denunciaram a tentativa de “golpe brando” em curso na Colômbia. “Desde a eleição do primeiro governo progressista do país – encabeçado pelo presidente Petro, pela vice-presidente ­Francia ­Márquez e pelo Pacto Histórico – os poderes tradicionais vêm tentando restabelecer uma ordem marcada por extrema desigualdade, destruição do meio ambiente e violência patrocinada pelo Estado”, anotam os signatários. “Querem interromper as reformas, intimidar, derrubar seus líderes e manchar sua imagem internacional”.

A Colômbia dará, nas próximas semanas, uma resposta ao dilema dos progressistas sulamericanos. Os partidos ditos de esquerda ainda têm força de mobilização? Mais: as ruas são capazes de fazer frente ao poder dos gabinetes? •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo