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Jogadoras de futebol enfrentam os preconceitos e a permanente tensão na Faixa de Gaza

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Dedicação. A atacante Leen Khoury, de 16 anos, se divide entre Ramallah e Jerusalém Oriental. E vai representar a seleção sub-17 na Copa da Ásia – Imagem: Giacomo Sini
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Um vento frio sopra em ­Ramallah à noite. Estamos em meados de maio, mas o bom tempo está atrasado. Na entrada do campo de futebol da Escola dos Amigos, um ambulante vende café, enquanto as jogadoras se aquecem em uma corrida em torno do gramado artificial. “É difícil para uma moça jogar futebol numa sociedade machista”, afirma Leen Khoury, de 16 anos, atacante do Sareyyet Ramallah, ao voltar para o banco. “É verdade, e também vivemos a ocupação aqui”, reforça Jessica Salameh, 22 anos, capitã do time, a envergar a camisa de número 23. Hoje, elas jogam um amistoso com a equipe masculina da Academia de Astros do Futebol, em Ramallah.

O futebol ainda é um esporte predominantemente masculino. No plano global, o crescimento das equipes femininas nas últimas décadas permitiu que as meninas ganhassem espaço e visibilidade no esporte, mas ainda há um longo caminho a percorrer. A discriminação de gênero, claro, é uma barreira a ser derrubada em todo o mundo, mas em cada região ela ocorre de formas diferentes. A realidade das jovens praticantes na Palestina oferece uma perspectiva única.

Do pátio principal da Universidade Dar Al-Kalima, em Belém, depois de atravessar uma passagem estreita, atrás de roseiras floridas, aparece o pavilhão desportivo no qual as meninas do Diyar ­Belém treinam. Algumas já estão nas laterais. “Hoje teremos um treino misto, as menores de 16 anos com as meninas do time principal”, diz Marian Bandak, gerente de futebol do Diyar. Chegam as retardatárias e começa o aquecimento. “Assim preparamos as mais novas para subirem a um escalão superior”, explica Farah Zacharia, que treina os times femininos.

Um em Belém, outro em Ramallah, o Diyar e o Sareyyet são os principais clubes do futebol feminino palestino. Existe uma certa rivalidade esportiva entre os dois, mas para essas jovens os desafios são jogados em outros níveis e enfrentados em conjunto. Muitas atletas que cresceram nas fileiras de suas respectivas equipes, de fato, chegam a vestir a camisa da seleção nacional.

“É uma questão de mentalidade, aqui na Palestina. Eu me aceito como sou”, diz Loreen Tanas

Entre elas está Loreen Tanas, 24 anos, que volta a treinar com o Diyar após uma pausa de seis meses. Ela acaba de terminar o expediente no restaurante onde trabalha, sobe as escadas às pressas e abre a porta do apartamento onde mora com a família, numa das principais artérias de Belém. Na ampla mesa da sala há uma panela de kafta, e a mãe arruma a cozinha. “Desde pequena eu jogava futebol com as outras crianças da rua”, conta Loreen, sentada no sofá ao lado do pai, que tem nos braços a neta. “Ingressei pela primeira vez num time de handebol e, em 2012, Marian percebeu minhas habilidades e me convidou para jogar futebol no Diyar.” Marian então jogava pela seleção palestina, da qual também foi capitã com a camisa 10. “No começo tive de enfrentar muito preconceito, porque o futebol é considerado um esporte para meninos, e nós, meninas, não podíamos usar shorts”, conta. Enquanto fala, Ibrahim, seu pai, olha para ela e acena com a cabeça. “Como pais, sempre apoiamos a sua escolha.” Loreen toma a palavra novamente: “É uma questão de mentalidade, aqui na Palestina. Eu me aceito como sou, mas em muitos casos a pressão da sociedade masculina faz com que as meninas percam a autoconfiança”.

Em 2015, Loreen estreou na seleção. “Os torneios internacionais fortalecem o nosso caráter”, afirma. “Confrontar com a experiência de jogadoras de outros países tem servido para nos deixar ainda mais determinadas a seguir os nossos sonhos.” Apesar das conquistas, a vida continua complexa. Loreen não só joga no Diyar e na seleção, mas também trabalha e estuda. “Estou me formando em ­Ciências do Esporte, para poder continuar trabalhando na área, não só como jogadora de futebol. Eu gostaria de ir para a Europa, talvez para a Espanha.”

No pavilhão desportivo coberto, as bolas ressoam ao bater na parede e na trave. Uma depois da outra, as garotas do Diyar se revezam em triangulações em desafio à goleira. Algumas lançam fortes voleios e arremates, mas há quem se atreva a atirar à queima-roupa. Nenhuma bola entra na rede. “Nenhum gol”, grita triunfante a goleira Cynthia Botto, 21 anos. Ela está no chão após defender o último chute de Loreen, que, recuperando a bola, marca com um toque enquanto sorri.

Horas vagas. Loreen Tanas divide-se entre o futebol e o emprego em um restaurante. Taima Osama reclama da sabotagem dos militares israelenses – Imagem: Giacomo Sini

Marian acompanha o treino da arquibancada, vestida com a camisa do Barcelona. “Como gerente também tenho de organizar viagens ao exterior. Na Jordânia é complexo conseguir vistos e passagens.” Mas vale a pena, ressalta. “Na próxima semana, as meninas voam para a Alemanha, para um encontro organizado pela cidade de Colônia. Vai ser uma grande experiência.”

Agora Marian tem um filho pequeno, mas o futebol sempre foi sua vida. “Quando eu jogava, colocava o futebol antes de tudo”, ela ri, continuando a olhar para o campo. “Eu faltava nos exames para jogar. Todas fazíamos isso, nossa geração teve de abrir espaço. A gente chorava quando perdia um treino. Hoje é diferente, as mais novas vivem uma situação melhor.”

Pouco antes da partida, as meninas do Sareyyet Ramallah reúnem-se na lateral do campo para ouvir as instruções da técnica Claudie Salameh, ex-capitã da seleção nacional com o número 7. Ela dá as últimas instruções com gestos largos, os olhos cheios de energia.

Natal Bahbah, de 16 anos, chegou ao Sareyyet em setembro de 2022, depois de jogar pelo Beit Hanina em Jerusalém Oriental. Para participar do treinamento, ela vem de táxi três vezes por semana para Ramallah, do bairro árabe, em Jerusalém, onde mora com a família. “É ao menos uma hora e meia de ida e o mesmo tempo de volta. A não ser quando Israel fecha os postos de controle, então não há treino. De manhã tenho escola”, diz Natal, antes de beber um gole de água. “Sempre que preciso atravessar o muro, passo pelos postos de controle em ­Qalandia ou Hizma. Praticar esporte é normal, mas aqui não.”

Leen tem parte de sua família em ­Ramallah, onde estuda, mas também mora em Jerusalém Oriental. Ela é amiga íntima de Natal, estavam no mesmo time antes de irem para o Sareyyet. E, como sempre, elas voltarão para casa juntas esta noite. “Muitas de nós frequentemente participam de torneios internacionais, seja por clubes, como a Copa da Noruega, ou com a seleção nacional.”

Em abril, Leen e Natal voaram para o Vietnã, com o restante da seleção palestina, para as eliminatórias da Copa da Ásia Feminina Sub-17, que será disputada em 2024 na Indonésia. “Lá perguntaram se éramos do Paquistão”, diz ­Leen, “porque não achavam que a Palestina fosse um país. Isso também é resultado da narrativa distorcida de Israel. E, para nós, viajar é sempre muito complicado.”

Militares israelenses lançam bombas de gás para atrapalhar os treinos e jogos

O jogo começa, é hora de entrar em campo. Nos primeiros 10 minutos, o jogo é todo no meio-campo masculino da Academia de Astros do Futebol. As meninas jogam duro no ataque e os colocam sob pressão. “Este é o único campo oficial onde podemos treinar em Ramallah”, diz Taima Osama, 16 anos, sem tirar os olhos do jogo. “Todos os times vêm aqui, e às vezes temos de ir para outro lugar”, acrescenta, sentada no banco com a camisa número 10.

Para Ammar Jalayta, o técnico da seleção, ela é uma das melhores jogadoras. Com uma respiração profunda, Taima retoma sua história. “Às vezes treinamos no estádio Faisal Al-Husseini, em Al-Ram, que fica bem ao lado do muro. Algumas vezes os militares israelenses lançam granadas de gás lacrimogêneo no campo, só para nos impedir de treinar, ou os vizinhos jogam garrafas contra nós.” Taima para de acompanhar o jogo por um momento e nos olha nos olhos. “Eu poderia contar muitas dessas histórias.” A Associação Palestina de Futebol, afiliada à ­Fifa, informou que, em 30 de março, no mesmo estádio, uma partida oficial foi interrompida pelo lançamento de gás lacrimogêneo pelas forças israelenses.

Com o apito final, o amistoso termina com a vitória por 1 a 0 dos meninos da Academia, mas atrás do placar Claudie elogia as meninas, que jogaram bem durante toda a partida. Enquanto as outras sobem na minivan da equipe, Leen e Natal se sentam num táxi. Na fila do posto de controle de Qalandia, as duas comem a refeição que trouxeram de casa e brincam. Um menino aproxima-se do carro, vendendo algodão-doce embalado, mas sua voz é abafada pela sirene de uma ambulância que se esforça para seguir em frente no engarrafamento. “Estamos acostumadas com isso”, Leen comenta amargamente.

No posto de controle, o silêncio cai, mas em um momento a barreira se abre. O carro agora vai direto para casa, a iluminação da estrada brilha, Leen escuta música e Natal fecha os olhos. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

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