Mundo
Estado de liberdade
Em um enclave na fronteira com a Tailândia, os rebeldes sobrevivem à margem da ditadura de Mianmar


Em uma faixa movimentada no leste de Mianmar, restaurantes com abrigos antiaéreos servem pratos fervilhantes de carne regada a cerveja belga e vinho francês. Adolescentes encontram-se em salas de sinuca, mulheres relaxam nos salões de beleza e revolucionários são desenhados em estúdios de tatuagem. Desde o amanhecer, tigelas fumegantes de sopa de macarrão são devoradas em casas de chá e, ao anoitecer, graves trêmulos ecoam de um clube de karaokê. Mas, ao contrário do interior do país, esse assentamento tem uma ausência notável: o regime militar.
A junta de Mianmar, que tomou o poder com um golpe em fevereiro de 2021, perdeu a maior parte do estado de Kayah e porções da área sul do estado de Shan para uma resistência antigolpe. Kayah, o menor estado do país, que se estende rente à fronteira com a Tailândia, é coberto por morros verdes, florestas exuberantes e selva densa, divididos pelo Rio Salween. Nenhuma linha clara marca onde começa o regime militar, mas ele ainda domina as principais cidades e uma vasta área, do litoral às planícies centrais.
Embora lutem contra as dificuldades da guerra, os moradores do estado de Kayah estão livres de soldados que espreitam nas ruas ou invadem suas casas à noite. Os negócios são melhores na área liberada, diz Hla Win, que mudou sua farmácia para o município de Demoso, a pouco mais de 200 quilômetros de estrada do centro de poder da junta militar na capital, Naypyidaw. “Eram apenas uma ou duas lojas, não o que você vê hoje.”
Em Kayah e Shan, quem não se submete ao regime tenta recomeçar a vida
À medida que partes do país escapam de seu controle, a junta volta-se para ataques aéreos mortais, ocorrência quase diária. Os militares ainda são mais coesos do que sua oposição fragmentada, mas acredita-se que o tamanho das forças de resistência corresponda aos 70 mil a 120 mil soldados de combate do exército.
Os rebeldes das Forças de Defesa das Nacionalidades Karenni (FDNK) atua em Kayah e Shan, onde grupos de oposição começaram a formar alternativas viáveis, com o surgimento de sistemas de saúde, educação e Justiça. Nesta região remota, bombardeios e ataques aéreos são uma ameaça constante, enquanto moradores mutilados, estradas marcadas por bombas e vilarejos abandonados são um lembrete constante do preço da liberdade. É um lugar assombrado por uma guerra civil brutal, mas onde a humanidade cotidiana da população permanece intocada.
No meio de uma estrada sinuosa em Demoso, bolas de discoteca iluminam uma fileira de cabanas, nas quais lutadores cantam sob o rangido de ventiladores de teto ou fumam em sofás surrados que cheiram a cerveja velha e cigarro. As funcionárias fazem duetos com a clientela, em sua maioria combatentes da linha de frente, e oferecem massagens em cubículos de palha. “Seus rostos estão tão cansados e deprimidos”, diz Maw Meh, que trabalha no clube. “Eles vêm aqui para tentar relaxar.” Sua colega Thida diz que elas ajudam os clientes a “aproveitar um pouco mais a vida” e arrecadam fundos para quem precisa de próteses. “Alguns deles perderam as mãos ou a masculinidade quando pisaram em minas terrestres. Eles não têm espaço para falar sobre seus sentimentos. Alguns se sentem tímidos, mas não ficam com raiva. Eles começam a falar e ficam chateados.”
Terror. Soldados a serviço da junta militar exploram os civis e dificultam o trânsito dos cidadãos – Imagem: Myat Thu Kyan/NurPhoto/AFP
Estabelecimentos como esses são sinônimos de trabalho sexual, por isso Maw Meh escondeu seu emprego da família. Mas seu serviço como soldado na linha de frente com apenas 16 anos não era segredo – sua mãe o incentivou. Em fevereiro de 2022, um projétil fraturou sua medula espinhal, ela conta, mostrando uma cicatriz que lhe causa dor quando se deita de costas. De seus dois namorados desde o golpe, um foi morto por morteiros e o outro foi torturado e assassinado por tropas da junta militar. “Tenho medo de ter outros”, afirma. “Não gosto tanto da minha vida agora, mas ao menos aqui posso conhecer pessoas diferentes e refletir.”
Em Demoso, um trabalhador humanitário local estima que apenas um quarto da população local pode se sustentar, o resto depende de doações de arroz e óleo de cozinha. Embora os preços sejam altos, há dinheiro suficiente em circulação para sustentar uma variedade de negócios, incluindo uma florista e um dispensário de maconha. O dono da loja, Maung Zaw, compra xampu, grampos de cabelo e baterias em uma cidade controlada pela junta. Nos postos de controle militares, enfrenta perguntas “agressivas” sobre seus bens. Finge que está indo para outra cidade sob controle militar. “Eles querem dinheiro, cigarros ou álcool”, explica. “Se pegam você tomando um atalho para evitar o posto de controle, confiscam todos os seus bens e às vezes o prendem. Aconteceu comigo duas vezes e tive de pagar para sair.”
Um grande pôster de Bob Marley pendurado numa cabana de bambu trançado e metal corrugado marca um dos dois estúdios de tatuagem do município, ambos inaugurados no ano passado. Lá, Salai Latheng está sentado ao lado de uma impressora contrabandeada de uma cidade sob controle militar horas antes. As tatuagens AK-47 e M16 estão na moda, diz. Uma imagem dos fuzis de assalto custa 5 mil kyats (cerca de 12 reais). Ele também oferece escolhas mais sutis, como um panda a segurar um balão, mas mais comuns são os pedidos de sak yant, arte em estilo tailandês que teria poderes de proteção.
Ex-garçom com talento para desenhar, Salai Latheng pratica em sua própria pele enquanto permanece um lutador ativo. Ele divide seus ganhos mensais com sua família e seu batalhão. “Um dos meus camaradas morreu instantaneamente, baleado na cabeça. Já vi muitas coisas desse tipo”, diz. “Pessoas que passaram por tristezas estão se tatuando como uma libertação. Antes havia um estigma de tatuagem por aqui, mas não existe mais.”
De sandálias bege e as unhas pintadas, Angelic Moe ajusta seu poncho e examina o capim alto através de grandes óculos escuros de grife. No oeste do estado de Kayah, sua unidade feminina defende uma vasta extensão de território. Moe trabalhava como professora primária em fevereiro de 2021, quando o então chefe militar de Mianmar, Min Aung Hlaing, ordenou que as tropas detivessem líderes civis após sua vitória eleitoral esmagadora, antes de se nomear presidente do Conselho de Administração do Estado, como a junta se autodenomina. Moe e suas 38 lutadoras acreditam que, seja qual for o final da revolução, a batalha pela igualdade de gêneros continuará por algum tempo. Atuando como batedoras, médicas e arrecadadoras de fundos, elas lutam contra um inimigo acusado de usar estupros e violência sexual como táticas de guerra. “Preciso ser muito mais dura e forte agora. Às vezes, me sinto como uma mãe, tendo de repreender as meninas e outras vezes acalmá-las.”
As forças de resistência, segundo as projeções, têm o mesmo tamanho do exército regular
A bravura da unidade feminina inspirou Jue Aung a voltar à batalha, mesmo depois de uma mina terrestre explodir metade de sua perna, em fevereiro de 2022. “As meninas vasculham a linha de frente, algumas até vão para a batalha. Então, decidi que devo voltar para a batalha como médico.” Além disso, ele acha muito doloroso pensar em seu futuro.
Enquanto um cachorro cava um lugar na terra fria abaixo dele, Aung reflete sobre o momento em que pisou na mina terrestre, um choque quente em seu corpo quando ele tinha ido ajudar um camarada ferido. “Tentei correr, mas caí no chão. Olhei para o meu pé e senti medo.”
Do alto de um morro, o soldado Aung Kyaw Minn observa os aviões e as igrejas destruídas de Demoso. Uma enorme cicatriz que desce por sua barriga conta a história de um morteiro que quase o matou, em março de 2022. Ele credita sua sobrevivência a um cirurgião de cabelos tingidos. “Graças a ele muitas vidas foram salvas.” O cirurgião Myo Khant Ko Ko passou por uma variedade de cores de cabelo, de loiro descolorido a verde azulado. Seu mais recente é um borgonha desgastado. “Gosto de viver livremente. Quero beleza e o cabelo não é problema para minhas pacientes. O mais importante é estar com boa saúde, com a mente boa.”
Em enfermarias superlotadas, pacientes, amigos e parentes dormem em cinco abrigos antiaéreos escavados na terra, ao redor dos pequenos prédios do hospital. O centro mudou-se para um local novo e protegido depois que caças bombardearam o anterior, em fevereiro. No fim de abril, ataques aéreos também danificaram outra clínica abandonada nas proximidades, bem como um hospital no sul do estado de Shan. A resistência afirma que dois médicos foram mortos.
“Se não há hospitais, nenhum paciente ferido na guerra pode ser tratado, então eles visam os hospitais e a equipe médica”, diz Khant Ko Ko. “Na maioria das vezes, recebemos pacientes com traumas, vítimas de minas terrestres, morteiros e lesões cerebrais.”
Ocasionalmente, os médicos tratam prisioneiros de guerra (PoW na sigla em inglês), alguns dos quais ficam em pequenas prisões administradas por policiais que desertaram da junta. Esses 120 policiais, conhecidos como Polícia Estadual de Karenni (KSP), foram formados em agosto de 2021 e agora trabalham em oito delegacias em todo o território. “Se não há KSP, não há local de detenção para dalan (informantes da junta) e PoWs, e eles podem ser mortos”, diz Bobo, um dos fundadores do KSP. Bobo era segundo-tenente em um estado vizinho quando irromperam os comícios antigolpe. Na época, os manifestantes colocaram imagens do chefe militar Hlaing nas ruas para que fossem pisadas quando os moradores caminhassem. Mas logo chegaram ordens para que a polícia removesse as fotos. “Naquele momento, o público olhou para nós limpando as fotos”, disse. “Eu me senti tão envergonhado. Eles não gostavam de nós. Pude sentir isso em seus olhos. Também senti vergonha de mim mesmo.”
Naquele momento, Bobo decidiu desistir de um emprego com renda garantida para se unir a centenas de outros que não conseguiam viver sob o jugo opressivo da junta de Mianmar. “Embora eu não tivesse certeza de como sobreviveria sem emprego, depois disso não importava para mim. Então, entrei no CDM e saí do emprego.”
O apoio público à revolução é vital, de acordo com o político Karenni, do local Khu Plu Reh, segundo quem o exorcismo do regime militar protegerá sua cultura e idioma. Ele tem um discurso preparado para quando encontrar pessoas deslocadas que se cansaram da guerra. “Esta é a última vez que lutaremos contra um golpe militar”, afirma. “Se não lutarmos, não veremos o que queremos que o nosso país seja. Esta é a nossa grande chance, uma que nunca tivemos antes. Devemos lutar.”
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Estado de liberdade’
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