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Domingo na Barão de Limeira

Os bacanas “racionais” e seus porta-vozes na mídia tratam opositores como casos de manicômio

Domingo na Barão de Limeira
Domingo na Barão de Limeira
Esboços de um orçamento mais digno desencadeiam ferocidade – Imagem: Marcos Oliveira/Ag.Senado
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Domingo, 4 de junho, os brasileiros acordaram iluminados por advertências do editorial que repousava na primeira página do jornal Folha de S.Paulo. Defensor impertérrito da liberdade de expressão, meu filho Carlos Henrique levou-me a peça no formato impresso. Pediu minha opinião.

Senti-me desimpedido para exercer a liberdade que a Constituição de 1988 concedeu aos cidadãos brasileiros e às empresas de comunicação. Nessa matéria, imagino desfrutar das mesmas prerrogativas do matutino paulista.

Sendo assim, fico à vontade para selecionar trechos do editorial domingueiro:

“Dadas as tensões políticas e institucionais que se acentuaram nos últimos anos, será particularmente doloroso – e perigoso – que nova etapa de retrocesso econômico afete diretamente o bem-estar da sociedade brasileira. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), infelizmente, tornou esse risco mais elevado.

A aposta na hipertrofia estatal como meio de resolução de conflitos e carências, que desde antes da posse se traduz em aumento contínuo e insustentável do gasto público, dificulta o controle da inflação, a queda dos juros e, logo, a retomada do crescimento da produção e da renda em bases duradouras.

O novo regramento orçamentário, que tramita no Congresso com o aval das forças fisiológicas, estabelece apenas limites débeis ao avanço da despesa, sem oferecer uma perspectiva confiável de contenção da dívida pública, hoje já em patamares exagerados para uma economia emergente”.

Em minha livre opinião, esta seleção de parágrafos sintetiza o Pensamento da ­Folha. Sublinho aqui a expressão Pensamento da Folha em respeito à advertência que encima os editoriais – O Que a Folha Pensa.

Vou exercer a ousadia de pensar além do horizonte de compreensão do centenário matutino. Hoje são raros os que se recordam, mas, no fim do século XIX e alvorecer do século XX, os responsáveis pela política econômica estavam pouco ligando para as consequências sociais de seus atos. Os governos eram capazes de executar uma elevação da taxa de juros – destinada a garantir o valor externo da moeda – sem ligar a mínima para o que iria acontecer com o nível de emprego ou com os salários dos trabalhadores. Até mesmo os partidos operários, em formação, se colocavam de joelhos diante dos mecanismos do padrão-ouro, que garantiam a estabilidade das moedas nacionais. A moeda era um ídolo intocável.

A ampliação da presença das massas trabalhadoras nas cidades e a conquista do sufrágio universal foram transformando em problemas sociais fatos que antes eram considerados resultados da conduta irregular dos indivíduos. A ideia de desemprego como fenômeno social produzido pela operação imperfeita de mecanismos econômicos é muito recente. Ainda no final do século XIX, o desemprego era confundido com a vagabundagem, inabilitação, ou simples má sorte.

Naqueles tempos, os detentores de riqueza sabiam que, diante de qualquer perturbação, a ação dos Bancos Centrais se inclinaria claramente na direção de uma defesa da paridade das moedas nacionais com o ouro. O padrão-ouro era uma instituição socialmente construída, cuja viabilidade dependia fundamentalmente da confiança dos ricos na ação protetora dos governos, que não tinham qualquer compromisso com a defesa do emprego e dos salários.

À medida que a sociedade industrial capitalista progredia e tomava conta do espaço social e econômico, tornou-se inevitável a percepção do desemprego como fenômeno social, por parte dos que sofriam as suas vergonhas. A partir de então, esse fenômeno se cristaliza na consciência social, como distúrbio e injustiça nascidos das disfunções do mecanismo econômico.

Isto obrigou os governos a dividirem, cada vez mais, a atenção entre as demandas domésticas e as medidas de defesa da estabilidade da moeda. Nem sempre os dois objetivos puderam ser atendidos simultaneamente. Tornaram-se cada vez mais frequentes os conflitos entre a manutenção de níveis adequados de atividade e de emprego e as exigências impostas pela administração monetária. Hoje em dia, os governos têm de atender às demandas populares e muitas vezes elas entram em conflito com a estabilidade da moeda.

A experiência histórica mostrou que, sob certas circunstâncias, é possível a manutenção de um equilíbrio relativamente estável e dinâmico entre estas duas­ tendências contraditórias das sociedades modernas: de um lado, as exigências dos grandes proprietários da riqueza que almejam acumular indefinidamente, de outro os desejos dos homens comuns, que aspiram simplesmente a uma vida digna e sem sobressaltos. A formidável arquitetura capitalista criada no pós-Guerra permitiu durante um bom tempo, entre 1945 e 1973, uma convivência generosa entre estabilidade monetária, crescimento rápido e ampliação do consumo dos assalariados e dos direitos sociais.

O sonho durou 30 anos e, à sombra da Guerra Fria, as classes trabalhadoras do Ocidente desenvolvido gozaram de uma prosperidade sem precedentes.

No entanto, são cada vez mais frequentes as arengas dos bacanas e de seus porta-vozes midiáticos, esses porta-vozes das forças impessoais do capitalismo, contra as tentativas dos simples cidadãos e cidadãs de barrar a marcha do Moloch insaciável e ávido por expandir o seu poder.

A grita dos sábios da finança é desferida contra os “desvios” da política, os surtos de “populismo”. Com esses slogans os ideólogos pretendem enquadrar, de novo, a sociedade na camisa de força de uma suposta racionalidade econômica. Quase sempre a “racionalidade” é um pretexto para esconder os propósitos reais, ou seja, o domínio sobre os homens comuns e suas necessidades.

Os bacanas “racionais” e seus porta-vozes midiáticos estão sempre dispostos a tratar os opositores e os críticos como casos de manicômio, apostando no acerto e na correção das opiniões que professam e das políticas que advogam.

O leitor há de se lembrar de Simão ­Bacamarte, aquele luminar da ciência que Machado de Assis imortalizou no conto O Alienista. Simão, dedicado estudioso da loucura, encarcerou toda a cidade de Itaguaí, inclusive a sua própria mulher, na Casa Verde, o manicômio que dirigia por delegação da comunidade local. Sua perquirição das formas de loucura chegou a tal perfeição que terminou se recolhendo à casa de loucos.  •

Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Domingo na Barão de Limeira’

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