Frente Ampla
A devastação de porteiras abertas na Câmara
Obedecendo à máxima tristemente notabilizada por Ricardo Salles, a bancada ruralista pendurou ‘jabutis’ antiambientais em uma proposta que nada tinha a ver com os temas


A aprovação da Medida Provisória 1150 pela Câmara dos Deputados deve horrorizar quem tem preocupação com o futuro do planeta. Obedecendo à máxima, tristemente notabilizada por Ricardo Salles, de passar a boiada enquanto a população não presta atenção, a bancada ruralista pendurou “jabutis” antiambientais em uma proposta que nada tinha a ver com os temas.
O objetivo da MP era prorrogar o prazo de adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) que vencia em dezembro de 2022. Isso comprometia a possibilidade de os agricultores aderirem ao Cadastro Ambiental Rural (CAR). Como a maioria dos estados está atrasada no CAR, milhares de agricultores seriam prejudicados.
O que era uma medida para resolver uma questão pontual, virou um ataque, principalmente à Lei da Mata Atlântica. Oportunisticamente, utilizou-se a MP para abrir porteiras à especulação imobiliária em áreas que deveriam ter mais, não menos proteção.
Houve coisa parecida em 2012, quando presidi a Comissão Mista criada para adaptar o Código Florestal à realidade brasileira. Como agora, a bancada ruralista viu na revisão do Código uma chance de passar a boiada. Embates, lobbies e pressões tiveram de ser enfrentados para que se chegasse a uma concertação, um acordo que levou a um texto não ideal, mas possível, sem permitir que se descaracterizasse o principal que era a preservação das matas e florestas. Na votação da MP 1150, o pacto do Código foi rompido.
Isto se verifica quando a MP 1150 autoriza o fim da exigência de compensação ambiental em caso de desmatamento de vegetação. Anteriormente, empreendimentos que causassem a supressão de áreas verdes precisavam compensar essa perda, por exemplo, por meio do plantio de árvores em outras áreas. Com essa mudança, a responsabilidade pela recomposição ambiental é reduzida, o que pode levar a um aumento do desmatamento sem medidas compensatórias, resultando em perdas significativas para a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos.
Também na flexibilização do desmatamento de vegetação primária (original) e secundária em estágio avançado de regeneração, observa-se o rompimento do pacto do Código Florestal. Lá, corretamente, prevaleceu o entendimento de que essas áreas desempenham um papel fundamental na manutenção da biodiversidade e no equilíbrio dos ecossistemas.
Hoje, ao permitir o desmatamento nesses espaços, a medida coloca em risco espécies endêmicas, compromete a qualidade dos recursos hídricos e aumenta a emissão de gases de efeito estufa, contribuindo para as mudanças climáticas.
A MP ainda acaba com a necessidade de parecer técnico emitido por órgãos ambientais estaduais para o desmatamento de vegetação. Esse parecer era uma etapa importante no processo de licenciamento, pois permitia a avaliação dos impactos ambientais e a análise de alternativas para minimizar danos. Com a alteração, a tomada de decisão sobre o desmatamento passa a ser menos embasada em critérios técnicos e científicos, aumentando os riscos de degradação ambiental e conflitos socioambientais.
Por fim, outra emenda alienígena e oportunista prevê o fim da obrigatoriedade do estudo prévio de impacto ambiental e da coleta e transporte de animais silvestres para a implantação de empreendimentos lineares.
Nada disso era objeto do tema da MP. Nada disto foi discutido com a sociedade ou mesmo no Congresso. Trata-se tão somente de uma farsa parlamentar que aproveita cada fresta para desferir ataques grotescos contra a natureza, a biodiversidade e a vida. Por isto me opus duramente a este relatório. Foi dessa forma, que passaram boiadas como Marco Temporal das terras indígenas, o desmonte dos órgãos ambientais e a legislação dos venenos.
A este “método Salles” de fazer política – que nada mais é do que retomar o modo bolsonarista de olhar para o meio ambiente – me oporei sempre, principalmente quando o que estiver em jogo for a preservação do que ainda resta de matas, florestas, águas, biodiversidade e respeito aos povos originários. Se depender do meu voto, a boiada não passa.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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