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Casos de família

De Norte a Sul do País, políticos exercem sua influência para emplacar parentes em Tribunais de Contas

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Cadeira cativa. A família Porto deve permanecer no TCE por seis décadas – Imagem: Ivaldo Reges/Alepe
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Um arranjo familiar deu o tom da escolha de um dos mais novos conselheiros do Tribunal de Contas de Pernambuco, eleito em 16 de maio. Eduardo Porto, advogado de 41 anos, assumiu a vaga deixada pelo pai, Carlos Porto, que antecipou em dois anos a aposentadoria de conselheiro do órgão, a fim de abrir caminho para o filho. Não por acaso, Carlos é irmão e Eduardo é sobrinho do presidente da Assembleia Legislativa, o deputado tucano Álvaro Porto, principal articulador e responsável por praticamente reunir a unanimidade dos deputados em torno do nome do seu parente.

Da esquerda à extrema-direita, Eduardo Porto contou com o apoio de todas as legendas, obtendo 47 votos na discussão em plenário, de um total de 49 parlamentares pernambucanos. Apenas um votou em branco e outro não compareceu à sessão porque estava de licença. Antes da votação, aconteceu a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça, pela manhã, só para cumprir tabela, uma vez que não houve qualquer questionamento ao candidato, apenas elogios e algumas ponderações. No mesmo dia, à noite, a governadora Raquel Lyra, PSDB, assinou a nomeação do novo conselheiro.

“No Tribunal, além da questão técnica, contarão também com alguém que tem a sensibilidade e a consciência das angústias dos gestores públicos, pois, mesmo não tendo me candidatado a qualquer cargo eletivo, venho de uma família de políticos: primos, tios, pai e avô”, discursou na CCJ. Além do tio deputado, Eduardo Porto tem uma tia e um primo prefeitos dos municípios de Canhotinho e Quipapá, respectivamente, no Agreste pernambucano. A função que assumiu no TCE tem entre as prerrogativas fiscalizar as contas públicas das prefeituras, mas, extraoficialmente, há um entendimento de que ele não vai julgar as contas dos municípios governados pelos parentes, considerando que é suspeito para desempenhar tal tarefa. Com cargo vitalício, o novo conselheiro deve passar mais de 30 anos na função, com salário de 37,5 mil reais. Seu pai, Carlos Porto, depois de três mandados de ­deputado estadual, foi nomeado para o TCE em 1990, permanecendo no órgão por 33 anos. Ou seja, o cargo público que acaba de passar de pai para filho vai somar seis décadas na mesma família, uma herança do patrimonialismo tão bem caracterizado na historiografia nacional.

Em Pernambuco, Eduardo Porto foi eleito conselheiro do TCE em sessão presidida pelo tio deputado e assumiu a vaga deixada pelo pai

O processo que culminou com a eleição de Eduardo Porto foi marcado por nuances que o favoreceram de forma particular, começando pela alteração no modelo de votação. Antes, os votos eram abertos, mas, no fim de abril, a mesa diretora da Assembleia Legislativa aprovou o Projeto de Resolução 568/2023, propondo votação secreta, sob a justificativa de que estaria se adequando ao Princípio de Simetria, determinado pelo Supremo Tribunal Federal. Poucos dias depois de o Legislativo mudar o formato da votação, Carlos Porto oficializou a antecipação da aposentadoria em 3 de maio, com a garantia de que seu filho iria substituí-lo. Não tardou para a Alepe publicar o edital com o prazo de cinco dias para os postulantes fazerem a inscrição, mas a única candidatura registrada foi a de Eduardo, fruto de um acordo prévio entre os deputados, segundo informações de bastidores. Num prazo recorde, Eduardo Porto foi eleito, nomeado por Raquel Lyra e empossado pelo TCE, fato consumado em 17 de maio.

Álvaro Porto não quis se pronunciar sobre a célere nomeação do sobrinho nem sobre a tese de favorecimento familiar. Por nota, alegou que todos os trâmites foram seguidos e que “a decisão sobre quem ocupa a corte do TCE é feita mediante a escolha dos 49 deputados que compõem a Assembleia Legislativa”. De acordo com o artigo 32 da Constituição de Pernambuco, o TCE é formado por sete membros, sendo quatro deles indicados pela Alepe e os outros três pelo Poder Executivo, com aprovação da Assembleia. Para ser indicado, o candidato precisa ter ao menos 35 anos, reputação ilibada, notório saber em conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos, financeiros ou de administração pública e dez anos de experiência nessas áreas, requisitos alcançados pelo novo conselheiro, que foi procurador-geral em alguns municípios e no estado de Roraima.

Pará. Esposa do governador, Daniela Barbalho teve de vencer batalha jurídica – Imagem: Redes sociais

A eleição de Eduardo Porto é quase tabu na Alepe. Os parlamentares se negam a comentar sobre o tema. É o caso do deputado Waldemar Borges, do PSB, titular da CCJ e um dos responsáveis pela articulação em prol do candidato. Procurado pela reportagem, disse que não iria falar porque a “pauta já foi vencida” e que o conselheiro havia sido até nomeado. O petista João Paulo, também titular da CCJ, não retornou aos contatos. O presidente da comissão, Antônio Moraes (PP), preferiu se calar. Mas, na sabatina, saiu em defesa da classe política, sem, no entanto, questionar o postulante a conselheiro. “O Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco vai julgar gestores, políticos, e é importante que se conheçam os dois lados. Talvez uma das coisas que mais impeçam hoje de se entrar na política e, principalmente de ser gestor, é a dificuldade na prestação de contas. Então, é importante que a gente tenha pessoas com sensibilidade ocupando aquele cargo.”

Procurado por CartaCapital, Eduardo Porto optou pelo silêncio. Por meio da Assessoria de Imprensa do TCE, disse preferir “não conceder entrevistas ainda, em razão de ter assumido o cargo há pouco mais de uma semana”. Depois de eleger o sobrinho, Álvaro Porto emplacou, também em tempo recorde, outro conselheiro para o TCE, o então deputado estadual Rodrigo Novaes, do PSB, imprimindo uma derrota à governadora Raquel Lyra, que, nos bastidores, trabalhou para o deputado Joaquim Lira, do PV. Ex-secretário de Turismo do governo Paulo Câmara, Novaes foi eleito por 30 votos contra 18 de Lira, assumindo a vaga deixada pela ex-conselheira Teresa Duere, que, assim como Carlos Porto, pediu aposentadoria antecipada. Deixou o cargo na quarta-feira 17 de maio. Menos de uma semana depois, dia 23, Rodrigo Novaes já estava eleito pela Assembleia como novo conselheiro do Tribunal, sendo empossado na sexta 26.

A cientista política Luciana Santana, professora da Universidade Federal de Alagoas, evoca a ética e a moralidade para questionar a tese da legalidade justificada nas indicações para os Tribunais de Contas nos estados. “Na Ciência Política, a gente trabalha com regras, mas também com a questão ética e moral. As regras são muito permissivas para que essas situações aconteçam”, observa. “A gente sabe que as indicações para esses cargos são de competência do Legislativo, mas estamos falando de cargos públicos e o tratamento deveria ser outro. O esperado seria que os indicados não tivessem relação com a classe política, uma vez que vão fiscalizar contas públicas. Ou seja, quem gera, quem acompanha e quem fiscaliza são os próprios políticos. O ideal seria que esses cargos fossem ocupados por quadros técnicos, sem vinculação com as famílias de políticos.”

A nomeação de primeiras-damas ganhou até uma alcunha popular: é o “esposismo”

Arranjos políticos beneficiando parentes e amigos para ocuparem o vitalício e vantajoso cargo de conselheiro em Tribunais de Contas estão longe de ser uma exclusividade de Pernambuco. Marília Góes, casada com o ex-governador do Amapá, Waldez Góes, hoje ministro da Integração Nacional, também é conselheira do TCE, indicada, em 2022, quando o marido ainda era governador. Em 22 de maio, Simone Denarium, primeira-dama de Roraima, foi eleita conselheira do TCE do estado, com salário de 35 mil reais e possibilidade de ter imóvel funcional. Os Ministérios ­Públicos estadual e federal protocolaram ação na Justiça para tentar impedir a nomeação, mas, até agora, não obtiveram êxito. Casada com o governador ­Antonio ­Denarium, do PP, ela é acusada de ter atuado como sócia de duas empresas enquanto exercia a função de secretária estadual, o que é proibido por lei.

Da mesma forma, uma briga jurídica colocou em xeque o cargo de conselheira de Daniela Barbalho, mulher do governador do Pará, Helder Barbalho, do MDB, eleita pela Assembleia Legislativa em 14 de maio. Uma semana depois, a Justiça paraense anulou a nomeação da primeira-dama, decisão derrubada no último dia 24. Na primeira ação, o juiz Raimundo Santana, da 5ª Vara da Fazenda Pública, entendeu que o caso se configurava nepotismo cruzado, uma vez que o governador indicou a mulher “mediante a conduta comissiva do Presidente da Assembleia Legislativa”. Interpretação bem diferente da que teve o desembargador Mairton Marques Carneiro, ao suspender o afastamento e apontar “grave prejuízo” para o estado, porque a querela atrasaria os processos sob responsabilidade dela.

A indicação de primeiras-damas para conselhos de Tribunais de Contas estaduais Brasil afora, o que está sendo chamado de “esposismo”, parece ser uma tendência e alcança todos os matizes ideológicos, da direita à esquerda. Na Bahia, por exemplo, Aline Peixoto, mulher do ex-governador e ministro da Casa Civil do governo Lula, o petista Rui Costa, foi eleita conselheira do Tribunal de Contas dos Municípios, com salário de 41 mil reais. No Piauí, o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o ex-governador Wellington Dias, do PT, emplacou, em janeiro, a esposa Rejane Dias para o cargo.

Alagoas. O ministro e ex-governador Renan Filho garantiu a vaga da mulher – Imagem: Redes sociais

Nora do senador Renan Calheiros, do MDB, e casada com o ministro dos Transportes e ex-governador de Alagoas, Renan Filho, a administradora Renata Calheiros é, desde dezembro do ano passado, conselheira do Tribunal de Contas do estado, função que lhe garante uma remuneração de 35 mil reais. Assim como Simone Denarium, em Roraima, Daniela é acusada de ser sócia-administradora de empresas privadas, infringindo a Lei 8.112/1990, que veta quem ocupa cargo público de ter sociedade em empresas privadas.

“No ângulo da Ciência Política, a presença de parentes indicados para cargos é uma página atual do familismo, ainda mais comum na política municipal. No entanto, devemos problematizar que a pluralização social e política no País desde a redemocratização tem aumentado o estímulo à participação das mulheres na política, afinal, as primeiras-damas exercem um papel político aos olhos do eleitorado”, comenta o cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) Cláudio André de Souza.

O advogado Pedro Amorim, doutorando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela UFRJ, cita a Súmula Vinculante número 13 do STF como forma de inibir o nepotismo cruzado no serviço público, mas adianta ser difícil configurar nepotismo no caso de ex-governadores, já fora do cargo, indicarem familiares para a função pública, embora reconheça o poder de influência deles. “Os ajustes mediante designações recíprocas, ou seja, ‘eu vou nomear o seu filho e você nomeia a minha filha’, são situações vedadas pela Súmula Vinculante número 13, e isso se extrai diretamente do texto constitucional. Há, porém, uma discricionariedade muito grande do Legislativo em indicar quem ele quiser para cargos que demandam algum tipo de votação. Não se trata de um cargo administrativo, há um escrutínio ali”, diz o especialista. “Há muitos casos de nepotismo não descritos na Súmula Vinculante, ela é apenas um esqueleto dos critérios que precisam ser analisados. Nas decisões do STF, não existe uma regra taxativa. Podem existir casos não previstos e eles devem ser analisados concretamente.” •

Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Casos de família’

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