Mundo
Cálculos de guerra
Com a eleição presidencial no horizonte, o democrata Joe Biden tenta lidar com o dilema da guerra da Ucrânia


Procrastinação, indecisão e medo caracterizaram a abordagem de Joe Biden à Ucrânia, desde a invasão pela Rússia 15 meses atrás. O comportamento aumenta as dúvidas sobre a durabilidade do apoio dos Estados Unidos ao começar a campanha para as eleições presidenciais de 2024. O contraste entre Biden e a liderança de Volodymir Zelensky é impressionante. Um se preocupa com desastres e perdas. O outro só pensa em vencer.
A mais recente, tardia e incompleta reviravolta de Biden, sobre o fornecimento de jatos de combate F-16, ilustra o problema. Zelensky tem pedido aviões de combate desde o início da guerra. Vizinhos como a Polônia foram simpáticos. Ainda com medo de provocar uma briga com a Rússia, Biden, o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, e funcionários do Pentágono se opuseram publicamente ao fornecimento dos F-16 até março.
Zelensky queria os aviões porque sabia que a Ucrânia é vulnerável por ar. À medida que a invasão se desenrola, a população, as moradias e a infraestrutura vital da Ucrânia são impiedosamente atingidas por mísseis russos. O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, explicou que jatos F-16 ou similares poderiam ter apoiado os sistemas de defesa aérea, reduzido as baixas e protegido as tropas terrestres. Mas eles ainda não tinham chegado.
Biden e Sullivan também rejeitaram propostas de experientes ex-generais dos Estados Unidos para “zonas de exclusão aérea humanitárias” patrulhadas pela Otan, inicialmente no oeste da Ucrânia, para proteger civis de ataques aéreos. Embora reconhecidamente arriscados, refúgios seguros semelhantes a operações anteriores no Iraque, na Bósnia e na Líbia podem ter salvado muitas vidas e contido o êxodo de refugiados. Eles ainda poderiam fazer isso.
O argumento de Biden, antes e hoje, é que tais intervenções, somadas aos grandes carregamentos de armas, compartilhamento de inteligência e apoio dos EUA, podem ser vistas pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, como uma escalada. Parece sensato à primeira vista. É, porém, muito cauteloso. Putin, Dmitry Medvedev e Sergei Lavrov são hábeis em jogar com os medos ocidentais. Sempre que novas formas de assistência a Kiev são discutidas, eles vomitam ameaças terríveis, às vezes a envolver armas nucleares.
Biden deveria ouvir Antony Blinken. Seu secretário de Estado identificou um padrão no ano passado: as advertências do Kremlin sobre retaliação e confronto direto raramente valem muito na prática. Os russos xingam e bufam, mas principalmente blefam. Putin não é totalmente estúpido. Ele sabe que nunca venceria uma luta com a Otan, muito menos sobreviveria a uma guerra nuclear.
A reviravolta dos F-16, confirmada na cúpula do G-7 em Hiroshima, abre caminho para o treinamento de pilotos ucranianos e o fornecimento de jatos de “quarta geração” por aliados da Otan. Mas é uma jogada típica de Biden. Os próprios EUA não se comprometeram a fornecer aviões. Se isso acontecer, não está claro se serão os modelos mais recentes do F-16 equipados com as armas mais modernas.
O interesse norte-americano no conflito parece em queda
Explicações pouco convincentes são oferecidas para a hesitação dos Estados Unidos. As autoridades dizem que seguiram um plano deliberado para garantir primeiro à Ucrânia todo o armamento pesado e os veículos blindados necessários para a contraofensiva. “Poderíamos, certamente, ter começado antes, mas havia prioridades muito maiores, e isso é visto por alguns como um ato de escalada”, disse o secretário da Força Aérea dos EUA, Frank Kendall.
Na verdade, foi a pressão dos aliados que se mostrou irresistível quando o Grupo de Contato da Ucrânia, de 50 países, se reuniu na base aérea de Ramstein, na Alemanha, em abril. O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, foi instado a pensar melhor por velhos amigos como a Grã-Bretanha e a Holanda, bem como pelos europeus orientais. Em seu retorno a Washington, aconselhou Biden a desistir de seu veto. A mudança norte-americana sobre os aviões de combate é uma vitória pessoal de Zelensky. Seu lobby incansável deu frutos e lançou luz sobre outro padrão emergente: como o presidente da Ucrânia, e não o comandante em chefe avesso ao risco dos Estados Unidos ou a aliança da Otan, conduz a agenda de guerra do Ocidente.
Como um líder capaz de inspirar a população e influenciar a opinião internacional, Zelensky envergonha Biden, Emmanuel Macron, Olaf Scholz e Rishi Sunak. Ele também mudou a conversa estratégica de maneiras fundamentais. A política dos EUA em relação à China, especialmente Taiwan, endureceu tangivelmente devido à agressão da Rússia, mas também graças ao sucesso de Zelensky em enfatizar novamente a inviolabilidade das fronteiras territoriais e a soberania nacional como imperativos globalmente reconhecidos. A Ucrânia também está cada vez mais a ditar o ritmo no terreno, independentemente de seus principais apoiadores. Incursões no sul da Rússia por milícias contra o regime com veículos militares dos Estados Unidos, um audacioso ataque de drones ao Kremlin, sabotagem, assassinatos e explosões misteriosas na Crimeia ocupada são um provável prelúdio da contraofensiva crucial de Kiev. O sucesso é vital para evitar a pressão chinesa e, possivelmente, franco-alemã neste inverno para trocar terras por paz.
Toda essa atividade, lícita e ilícita, agrava o nervosismo da Casa Branca, enquanto o apoio público norte-americano à Ucrânia parece diminuir. Como nenhum dos principais adversários republicanos em 2024, Donald Trump e Ron DeSantis, está comprometido em apoiar Kiev, Biden deve ser mais corajoso e fazer mais, mais rápido – pois seu tempo e o da Ucrânia podem estar se esgotando. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cálculos de guerra’
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