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Pelo olhar de um marchand

As 200 obras da exposição ‘Coleção Imaginária de Paulo Kuczynski’ revelam as feições do colecionismo privado no País

Pelo olhar de um marchand
Pelo olhar de um marchand
Ilusões Perdidas (1933), de Eliseu Visconti, e Tocadora de Acordeão (1942), de Lasar Segall, compõem a primeira parte do largo panorama da arte brasileira exposto no Instituto Tomie Ohtake – Imagem: Jorge Bastos e Redes sociais
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Paulo Kuczynski era aluno do curso de Biologia da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da União Nacional dos Estudantes (UNE) quando foi ter pela primeira vez à casa de Alfredo Volpi (1896-1988). O ano era o de 1967 e, à altura, os jovens tentavam sensibilizar alguns artistas para que doassem obras num gesto de apoio financeiro ao movimento.

A conversa com Volpi fluiu tão bem que Kuczynski, morador do bairro da Aclimação, vizinho ao Cambuci, onde vivia o artista, foi visitá-lo outras vezes. Dois anos após o primeiro encontro, Kuczynski tomaria coragem de fazer o movimento que definiria seu destino: pegou um quadro de Volpi, em troca de um cheque de pequeno valor, e prometeu tentar vendê-lo.

Em poucos dias, viu seu plano dar certo. “Recentemente, peguei um quadro do Volpi, olhei na parte de trás e vi minha letra, com a data anotada: primeira quinzena de setembro de 1969”, conta, 54 anos depois, um dos mais reconhecidos marchands brasileiros e, certamente, o que mais Volpis negociou.

Não por acaso, o artista do bairro do Cambuci é uma presença marcante na exposição Coleção Imaginária de Paulo Kuczynski, que reúne, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, mais de 200 trabalhos de 39 artistas que, nessas cinco décadas, o marchand, que é também colecionador, comprou, vendeu e tornou a vender.

A mostra insere-se em um programa da instituição que, desde 2022, busca tornar visíveis grandes obras de artistas consagrados que, por estarem em coleções privadas, não são acessíveis. A primeira exposição trazia as peças pertencentes ao colecionador e empresário cea­rense Igor Queiroz Barroso.

“Reunimos o que, para mim, representa o auge de cada artista. São mais de 50 anos formando coleções e escolhendo obras e, na mostra, só tem aquilo que gostei muito de ter vendido”, diz Kuczynski.

Embora alguns desses artistas já tenham sido reunidos em exposições feitas na galeria do marchand, como Di ­Cavalcanti: Alguns Inesquecíveis, que cobre o período dos anos 1920 a 1940, e Volpi: Uma Homenagem, que vai dos anos 1930 aos 1970, muito do que é agora revelado viveu sempre longe dos olhos do público. “Muitos desses trabalhos nunca foram expostos e talvez nem voltem a ser”, diz.

A exposição, pela própria natureza, tem o nome dos colecionadores como um de seus pontos de interesse. Ainda que muitos dos donos dos quadros e esculturas tenham preferido se manter no anonimato, outros tantos estão identificados logo abaixo do título das obras e acabam, de certa forma, por revelar um pouco da história e das feições das grandes coleções de arte brasileira.

Alfredo Setubal, herdeiro do Banco Itaú; o casal Heitor Martins e Fernanda Feitosa, hoje à frente do Masp e da SP Arte, respectivamente; Ladi Biezus, da Logos Engenharia; e José Olympio da Veiga Pereira, presidente da Fundação Bienal, são alguns daqueles com quem Kuczynski parece ter estabelecido uma longa relação.

“Será que a obra, elo primordial entre marchands e colecionadores, não carrega consigo uma aura que gera um afeto permanente entre as duas partes?”, pergunta ele no texto do catálogo. O que é certo é que o percurso de Kuczynski, que tem um escritório de arte que funciona desde 1974 na região dos Jardins, em São Paulo, é também aquele percorrido pela arte brasileira ao longo de mais de um século.

“Muitos desses trabalhos nunca foram expostos e talvez nunca voltem a ser”, diz Kuczynski

Kuczynski, em entrevista dada a ­CartaCapital, por telefone, na véspera da abertura da exposição, no sábado 20, relembrou, com indisfarçável emoção, as histórias por trás de algumas das obras – que são, no fundo, histórias de sua vida.

Há, em sua coleção imaginária, as flores do Volpi que pertenciam a ele mesmo e que, depois de meses sem conseguir negociar nenhum quadro, viu-se obrigado a vender. E há quadros que levou até 15 anos para conseguir adquirir. “Eu ligava para a família a cada quatro meses, por exemplo, para ver se tinham mudado de ideia. Tem obras ali que foram perseguidas”, diz, rindo. “Mas, quando entro numa casa, não sei se vou ver uma ­obra-prima ou uma obra medíocre ou irrelevante.” Há também obras compradas de intelectuais e artistas que as receberam do próprio pintor, e um Di ­Cavalcanti que passou dez anos guardado: “Um marchand tem de saber guardar uma obra, deixá-la amadurecer.”

A rota a ser percorrida pelo público inicia-se com as pinturas de Eliseu ­Visconti produzidas na virada do século XIX para o século XX, e chega aos azulejos feitos por Adriana Varejão já no século XXI. No meio disso estão Leonilson, José Pancetti,­ Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, ­Ismael Nery, Candido Portinari, Lasar Segall, Frans Krajcberg, Sérgio Camargo,­ ­Vieira da Silva, Wesley Duke Lee, Alberto da ­Veiga Guignard etc.

Mas Volpi é, nas palavras de Jacopo Crivelli Visconti, o curador, o “centro de gravidade” da exposição. Frente a frente com ele, em outra parede, estão várias pinturas marcantes de Pancetti, que retrata um Brasil de mares, rios e barcos. Não demora, porém, para que as figuras e paisagens se diluam até esvanecerem em Antônio Bandeira ou virarem arte concreta, pelas mãos de Lygia Clark.

A cronologia é, no entanto, apenas uma das portas de entrada para essa coleção que espelha não só a arte, mas o colecionismo brasileiro. “O olhar do ­marchand nunca será o do acadêmico ou do curador”, diz. “É o olhar de quem convive com a obra, às vezes, por muitos anos.” •

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

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