Editorial
Histórias da manipulação
Neste gramado não faltou uma consistente e longa contribuição nativa, enquanto também a Itália teve seu escândalo das apostas


Os Carta – pai, mãe e dois filhos – chegaram em São Paulo em agosto de 1946. O primogênito chamava-se Mino e o outro Giotto. Tratava-se de diminutivos: Mino como escolha do próprio, que não apreciava seu nome de batismo herdado do avô paterno, o outro nascia da corruptela do seu próprio nome, Luigi, herdado do avô materno. Deu em Lugiotto e, finalmente, sobrou-lhe o resto. O pai, jornalista, recebera uma oferta de trabalho muito promissora, mas na chegada não se realizou. Quem a fizera em um telegrama da Italcable em inúmeras páginas na hora H mudou o plano e Giannino Carta, depois de algumas peripécias, foi autor da primeira reforma do jornal O Estado de S. Paulo. Acabava de ser devolvido aos legítimos proprietários, a família Mesquita, depois de encampado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, até quando o ditador caiu.
A redação do jornal estava instalada na Rua Barão de Duprat, no bairro árabe perfumado de cânhamo e gergelim. Os donos tinham muito apreço pelo recém-chegado. Rui Mesquita sempre o considerou como seu mestre. Na esquina da rua com a Ladeira da Memória havia um restaurante de cozinha árabe de onde, logo que passei a apreciá-la, me tornei assíduo frequentador. Quando chegamos ao Brasil, o País era tido como do carnaval e do futebol. Aquele ainda era de rua, os sambódromos ainda não haviam sido erguidos, enquanto este ainda não adentrara aos tempos de Pelé. A folia carnavalesca gozava da farta cobertura da revista O Cruzeiro, entregue à veia de David Nasser e às imagens de Jean Manzon, ao qual se seguiram vários fotógrafos de ótima qualidade.
Antes do Mundial de 1982, Paolo Rossi foi suspenso por dois anos da prática do futebol pela Justiça esportiva italiana – Imagem: Omega Sabattini/DPA/AFP
Ao voltar para a Itália, aos 23 anos, dei para ouvir falar de um garoto milagrosamente habilidoso com a bola nos pés. Chamava-se Pelé, menino esperto de origem interiorana destinado a iniciar uma longa temporada de futebol de insuperável qualidade, como jamais se dera pelos gramados do mundo. De volta ao País, para trabalhar inicialmente como diretor de redação da revista Quatro Rodas, da Editora Abril, entendi com perfeita clareza e necessária antecipação que a obra de Victor Civita correria o risco fatal de ser demolida pelo seu primogênito Roberto. Por obra de um monumental resultado do seu exame psicotécnico, ele confessava ser obrigado a aceitar a ideia de ser o mais inteligente do Brasil e um dos píncaros da sabedoria mundial.
Meu pai não gostava de futebol, enquanto eu o praticava com fervor no campo do Corinthinha de Pinheiros, de terra batida e implacavelmente irregular por causa de um declive que, de repente, escalava a caminho de um dos gols. O bolípodo de então não pagava salários milionários e os jogadores, até os da Seleção, embrulhavam suas chuteiras em papel jornal. A glória era ter condições de adquirir uma “chanca” argentina. Não tardou a era do astro, consagrado pela primeira vitória no Mundial de 1958, disputado na Suécia, quando o planeta se deu conta de quem era aquele menino que ainda não completara 18 anos.
Quando Pelé se machucou no segundo jogo do Mundial de 1962, no Chile, de início fiquei sinceramente preocupado. Logo, porém, me tranquilizei com o extraordinário desempenho de Garrincha, um ponteiro-direito que sabia atuar em qualquer posição. Ao cabo, veio o Mundial de 1970 e a Itália foi derrotada inapelavelmente na final mexicana. Nada me pareceu mais justo do que aquele resultado, premiava o melhor time daquele momento. Teve início quatro anos depois o reinado de João Havelange na Fifa, em assustadora concomitância com a presença de Ricardo Teixeira na chefia da federação nativa de futebol.
A obra-prima da gangue deu-se em 1994, nos Estados Unidos, quando o time de Maradona e Batistuta começou a aparecer como o grande favorito e Havelange cuidou de eliminar o rei do futebol argentino, na certeza do uso de droga por parte de um adversário de outra forma invencível. A turma do mal cuidou de criar o sucessor, Joseph Blatter, disposto a atuar na mesma área frequentada tão eficazmente pelos antecessores. Somente em 2015 Blatter padeceu do merecido ostracismo. No futebol italiano, houve vários casos de apostas irregulares a envolver até mesmo jogadores de seleção, como o próprio Paolo Rossi, algoz do Brasil, em 1982, na tragédia de Sarriá, e o ponteiro Giuseppe Signori, finalista do Mundial de 1994 contra o Brasil na celebrada contenda em que Roberto Baggio chutou seu pênalti por cima do travessão. •
Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.
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