Política
A culpa é do mordomo?
Mesmo se “matar no peito”, Mauro Cid, o ajudante de ordens, continuará uma pedra no sapato do clã Bolsonaro


Jair Bolsonaro depôs à Polícia Federal na terça-feira 16. Foi a terceira visita à sede da instituição desde sua volta ao Brasil, em março, desta vez para se explicar sobre a adulteração no registro das vacinas contra a Covid-19, que ele não tomou. Em três horas de interrogatório, disse não saber nada sobre o assunto: nem como injeções que não tomou foram inseridas no sistema do SUS, nem quem teria providenciado a fraude e por que, nem quem acessou sua conta no programa ConectSUS e emitiu o cartão em seu nome, e por qual motivo. A PF havia descoberto que a conta de Bolsonaro no ConectSUS havia emitido o cartão imerecido três vezes em dezembro. Nos dias 22 e 27, a partir de um computador da Presidência da República, e no dia 30, via celular do tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, então ajudante de ordens do mandatário. No dia do último acesso, o capitão tinha viajado para um autoexílio na Flórida, antes ainda do fim do mandato, e Cid embarcara no mesmo voo. Se Bolsonaro não sabia nada sobre o cartão, o tenente-coronel havia agido por iniciativa própria? Por qual motivo?
Inserir dados falsos em um sistema de informações é crime e a pena varia de 2 a 12 anos de prisão. Quando Cid foi preso em caráter preventivo, sem data para ser solto, em 3 de maio, na Operação Venire, a PF havia reunido farto material a provar que ele conseguira um cartão vacinal imerecido para a esposa, Gabriela, graças à inclusão de dados fajutos no sistema do SUS. E que o fizera com apoio de alguns funcionários, o que caracteriza formação de quadrilha, crime que custa de 3 a 8 anos de cadeia. As evidências reunidas pelo delegado Fábio Alvarez Shor indicam que o militar empregou o mesmo esquema para obter o cartão do chefe. Quebrar o galho da esposa tem motivo autoexplicativo. Mas, e para Bolsonaro? Qual justificativa o ex-ajudante de ordens daria à polícia ao depor na tarde da quinta-feira 18, três horas após a conclusão desta reportagem? Mataria no peito e diria que o então presidente realmente nada sabia? Ou o incriminaria?
Imagem: Marcos Corrêa/PR
Da adulteração na carteira de vacinação ao pagamento de contas de Michelle, Cid está em todas
No dia de sua prisão, Cid havia se calado perante a PF, assim como Bolsonaro(o capitão teve a casa vasculhada, mas não foi preso). Seu advogado era um prestador de serviços ao clã. Rodrigo Roca defendeu Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” e foi Secretário Nacional de Defesa do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça, no último ano do capitão no poder. Em uma entrevista dois dias depois de Cid ir em cana, Roca havia dito que o ex-presidente não dera nenhuma ordem para o tenente-coronel a respeito do cartão de vacina. Parecia advogado do capitão, não do tenente-coronel. E este o trocou por outro defensor, o criminalista Bernardo Fenelon, conhecido por posições públicas favoráveis a delações premiadas.
“Matar no peito” a bola do cartão de vacina não livrará o tenente-coronel de um cerco policial. Logo, não salva o ex-presidente de vez. Cid foi o principal ajudante de ordens de Bolsonaro por quatro anos, é testemunha do que quer que tenha sido feito de regular ou irregular durante o mandato. Ele era, por exemplo, para-raios de apelos de aliados do chefe que pregavam um golpe militar durante o governo e após a eleição. Sabotar a confiança popular nas urnas eletrônicas é o que está prestes a levar o Tribunal Superior Eleitoral a julgar uma ação que deixará Bolsonaro inelegível por oito anos. O presidente do TSE é Alexandre de Moraes, o mesmo que no Supremo Tribunal Federal conduz vários inquéritos sobre Cid. O STF tornou réus 795 envolvidos no quebra-quebra de 8 de janeiro em Brasília, todos acusados de tentativa de golpe de Estado (4 a 12 anos de prisão) e de abolição violenta do Estado de Direito (de 4 a 8 anos). Quem seria o autor intelectual do quebra-quebra? Bolsonaro? Cid pode ajudar a responder à pergunta, ainda que involuntariamente, pelo teor de seu celular, apreendido e periciado pela polícia.
Tensão. Fenelon, novo advogado de Cid, entende de delação e lavagem de dinheiro. Wajngarten passou de marqueteiro a causídico – Imagem: Andressa Anholete/Getty Images/AFP e Redes sociai
No cerco ao tenente-coronel, a PF adotou uma velha máxima: “Siga o dinheiro”. O militar é alvo de um inquérito sobre lavagem de capitais, investigação capaz de aborrecer seu pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid, e o irmão, Daniel Cid. O inquérito nasceu da descoberta de 35 mil dólares e de 16 mil reais em espécie no cofre da casa do tenente-coronel, no dia da prisão. Quem guarda moeda em espécie costuma fazê-lo para ocultar a origem. Registre-se que o advogado de Cid é especialista não só em delações, mas em casos de lavagem. A apuração contra o militar é abastecida com achados da PF anteriores ao montante no cofre. Há, entre outros, um depósito de 400 mil reais na conta de Cid em março de 2022, feito por um tio de sua esposa, João Norberto Ribeiro, conforme noticiado pela revista Veja. A quantia seria parte de uma herança deixada para Gabriela, segundo advogados de Bolsonaro, entre eles Fábio Wajngarten, em uma entrevista coletiva, em Brasília, na véspera de o capitão comparecer à PF. Uma entrevista que, por si só, dá uma ideia do tamanho da preocupação do ex-presidente com a atual enrascada.
A PF encontrou ainda no celular de Cid mensagens sobre remessas de dinheiro aos Estados Unidos. Os investigadores esperam que autoridades norte-americanas facilitem, via acordos de cooperação, a apuração do destino dos recursos e o motivo da transferência. O pai de Cid chefiou o escritório em Miami da Apex, a Agência de Promoção de Exportações, no governo Bolsonaro, nomeado em 2019. O general é amigo do capitão, foi seu colega na academia militar. Miami é um dos redutos da extrema-direita dos EUA, abriga expatriados de Cuba e Venezuela (e era a segunda cidade com mais eleitores brasileiros no exterior no ano passado, 40 mil). Teria a extrema-direita local dado uma força a Bolsonaro via Cid pai e Cid filho? O general foi demitido da Apex pelo governo atual, em janeiro.
O ajudante trocou de advogado e agora é atendido por um especialista em delações
Daniel, o outro filho do general, mora há anos nos EUA, trabalha no ramo da Tecnologia da Informação. Possui uma firma sediada em um estado, Delaware, conhecido por ser paraíso fiscal. E está por trás de um trust, espécie de sociedade administradora de recursos de terceiros, chamado Cid Family Trust, conforme o site Metropoles. É no nome do trust que está a casa de 1,7 milhão de dólares (8,5 milhões de reais) e cinco quartos onde Daniel mora, no estado da Califórnia (ele tem ainda uma casa em Miami, de 400 mil dólares). Na Califórnia fica o Vale do Silício, polo das maiores empresas de comunicação digital do mundo, como Facebook e Google. Em tese, o emprego de Daniel justifica a vida boa e os negócios imobiliários. Será que a PF descobrirá algo irregular a unir as finanças dele e do irmão?
Daniel precisou depor, em novembro de 2021, aos federais por causa de Mauro Cid. A delegada Denisse Rosas Ribeiro investigava o vazamento de um relatório policial sigiloso sobre uma invasão hacker ao TSE em 2018. A existência da papelada foi trazida a público por Bolsonaro em um vídeo no YouTube em 4 de agosto daquele ano. Cid havia deixado a digital no vazamento. Tinha ligado para o irmão e pedido para ele colocar o relatório em um servidor, um computador-depósito de conteúdos acessíveis via internet. Daniel, à época chefe de engenharia de software e de produtos em duas empresas, colocou no servidor “brasileiros.social”, criado por ele nos EUA para armazenar postagens feitas em uma rede social chamada Mastodon. À PF contou que havia prestado esse tipo de serviço ao irmão cinco ou seis vezes. Foi o inquérito aberto para apurar esse vazamento que levaria a posteriores quebras de sigilo comunicacional de Mauro Cid por Moraes.
Em família. O irmão Daniel e o pai Mauro Cesar Lourena estão nesta com Cid – Imagem: Arquivo/Alesp e Redes sociais
No capítulo “grana”, Cid aparece ao lado de Michelle Bolsonaro em suspeitas da PF. Em outro inquérito, a polícia investiga se houve desvio de verba pública para pagar gastos da então primeira-dama não cobertos pela Presidência. Como ajudante de ordens de Bolsonaro, o militar administrava o cartão corporativo da Presidência, usado para bancar gastos rotineiros do chefe da nação, e da conta pessoal do capitão. Teria havido mistura entre as duas fontes de recursos na hora de quitar despesas de Michelle? Não é uma hipótese que possa ser descartada, a julgar pelo que os policiais federais descobriram no celular de Cid e de ex-assessoras de Michelle.
O material, divulgado em parte pelo UOL, mostra conversas via WhatsApp entre Giselle Carneiro Silva e Cintia Borba Nogueira, então assessoras de Michelle na Presidência, e entre Giselle e Mauro Cid. São conversas sobre dinheiro, pagamentos, depósitos e o risco de haver alguma conduta que possa ser descrita como “rachadinha”, nome folclórico para o crime de peculato, o embolso de verba pública por agente público. Em 1o de setembro de 2021, Cid recebeu das assessoras de Michelle o boleto de um plano de saúde de um tio da então primeira-dama, de nome Yuri Daniel Lima. Supõe-se que ele pagou o boleto. Com que verba? Da Presidência? Ou da conta de Bolsonaro? Os advogados do ex-presidente dizem que o capitão pagava o convênio de Lima, por ser este portador de necessidades especiais, e que o valor saía da conta pessoal.
A PF quer saber se um esquema de “rachadinha” bancava as despesas de Michelle
Entre março e julho de 2021, Cid depositou 13,6 mil reais para Michelle, em oito operações (seis por meio de um caixa eletrônico, uma na boca do caixa de uma agência e uma transferência eletrônica). De onde saiu o montante? E no que foi usado? A PF descobriu ainda que um integrante da equipe de Cid na Presidência, o sargento do Exército Luís Marcos dos Reis, mandou recursos para uma tia de Michelle, de nome Maria Helena. Há registro de um depósito de 2,8 mil. A defesa de Bolsonaro diz que Maria Helena era babá da filha pequena de Jair e Michelle e recebia salário de 2,8 mil, dinheiro que sairia da conta pessoal do ex-presidente. Seria essa a razão dos repasses de 13,6 mil de Cid a Michelle?
Outro achado da PF: pela conta de Reis passou o dinheiro depositado por uma empresa de Goiás, a Cedro do Líbano, que tem contrato um com órgão federal, a Codevasf. Por quê? Em uma ocasião (27 de maio de 2022), o sargento sacou 12 mil reais dez minutos após um desses depósitos, de 15 mil, ser feito pelo marido de uma das sócias da Cedro. O sargento foi preso juntamente com Cid em 3 de maio. Mensagens de celular indicam que ele participou da fraude no cartão de vacina da esposa de Cid: conseguiu que um tio médico, Farley Vinícius Alcântara, forjasse, na cidade goiana de Cabeceiras, um cartão com duas doses de vacina anti-Covid que Gabriela Cid jamais tomou.
Tarefeiros. Reis e Barros deixaram digitais nos múltiplos serviços prestados aos Bolsonaro – Imagem: Redes sociais
Áudios de WhatsApp também alimentam suspeitas sobre as despesas de Michelle. Uma delas de 25 de novembro de 2020. Naquele dia, Giselle Carneiro escreveu a Cid que alguém de nome Adriana havia tratado com a então primeira-dama do uso de um certo cartão de crédito. “Ela (Adriana) falou que conversou. Explicou (a Michelle), falou todos os problemas, preocupações, né?”, diz o texto. Resposta de Cid: “É a mesma coisa do Flávio (Bolsonaro, metido em “rachadinha” quando deputado estadual). O problema não é quando! É como deputado, rachadinha, essas coisas”. Mais: “O Ministério Público, quando pegar isso aí, vai fazer a mesma coisa que fez com o Flávio, vai dizer que tem uma assessora de um senador aliado do presidente que está dando rachadinha, tá dando a parte do dinheiro para Michelle”.
A ex-primeira-dama utilizou, de 2011 a 2021, um cartão de crédito fornecido por uma amiga. Ela não teria renda para conseguir um cartão para si, e Bolsonaro seria “pão-duro” a ponto de não permitir que ela compartilhasse o cartão dele. É o que dizem os advogados de defesa. A amiga em questão é Rosimary Cardoso Cordeiro. Esta teria dado um cartão adicional a Michelle, espécie de cartão para dependente. A fatura é uma só, em nome da titular. Rosimary é funcionária no gabinete da senadora Damares Alves, do Distrito Federal. Na época em que o cartão adicional esteve ativo, ela batia ponto em outro gabinete, o de Roberto Rocha, do Maranhão, cujo mandato terminou em 2022. O que se entende das mensagens de Cid é que Rosimary pode ter custeado Michelle com verba pública. A PF identificou alguns repasses do sargento Reis para Rosimary. O clã Bolsonaro diz que esse tipo de repasse era para pagar a fatura do cartão adicional cedido a Michelle e teria deixado de ser usado em 2021, quando o Banco do Brasil deu um à então primeira-dama.
A ver as cenas dos próximos capítulos. •
Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.
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