Sociedade
Abandonados à própria sorte
Uma comunidade no Semiárido do Piauí denuncia o descaso do Poder Público com a população quilombola


O ano letivo ainda não começou no Quilombo Macacos, em São Miguel do Tapuio, no Semiárido do Piauí, a 227 quilômetros de Teresina. Isso porque, desde 6 de fevereiro, data prevista para o início das aulas, os moradores ocupam a única escola da localidade, em protesto contra o “racismo institucional”, segundo acusam, praticado pela prefeitura. De acordo com os moradores, desde que assumiu a gestão, em 2021, o prefeito Pompílio Evaristo Filho, do PSD, reduziu os serviços prestados à comunidade nas áreas de saúde e assistência social. Não bastasse, o alcaide substituiu professores antigos por docentes com práticas racistas na Escola José Felix Almeida. A relação azedou de vez em maio de 2022, quando os quilombolas tentaram realizar o seminário 13 de Maio: A Falsa Abolição no local. Inicialmente, o pedido foi negado pela Secretaria de Educação, que só voltou atrás após a Defensoria Pública da União entrar no caso.
A animosidade seguiu no pós-evento, quando foi encaminhado à prefeitura um relatório aprovado no seminário, em que a comunidade faz uma série de reivindicações, como a volta das políticas públicas retiradas, a substituição de professores e o cumprimento da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, que obriga o Poder Público a ouvir previamente os povos originários sobre decisões a ser tomadas que afetam a própria comunidade. “Começaram retirando o atendimento à saúde. A gente tinha todo tipo de acompanhamento: visita aos acamados, vacinação, consulta uma vez por mês pelo médico da família, pré-natal, e agora não tem mais nada. Depois interromperam a construção de uma estrada na comunidade. Na escola, os professores tratavam os alunos com deboches”, denuncia Maria Félix, líder comunitária do quilombo, acrescentando que o secretário de Obras da cidade se diz proprietário de parte do território ocupado pela comunidade, que luta pela titularidade de suas terras há mais de três décadas.
Os quilombolas também se queixam do desrespeito à Lei 10.639, de 2003, a determinar a implantação de uma disciplina voltada para o ensino da história afro-brasileira. Denunciam ainda que os recursos da merenda não estão sendo aplicados adequadamente. Segundo a legislação, as comunidades quilombolas deveriam receber 30% a mais dos recursos destinados à merenda escolar, um incremento na alimentação dos alunos, mas, na prática, a comida oferecida é de baixa qualidade. Além disso, segundo Félix, era comum os professores, orientados pela Secretaria de Educação, vigiarem as reuniões de moradores que aconteciam no pátio da escola, uma forma de intimidar os quilombolas. “A comunidade era constrangida. Muitas vezes deixamos de discutir assuntos importantes por causa da presença de pessoas que não respeitam a nossa identidade.”
Os moradores do Quilombo Macacos ocupam a única escola da localidade desde 6 de fevereiro
Como resposta à ocupação, a prefeitura transferiu os estudantes para outra escola fora da comunidade, decisão que não foi acatada pelos pais dos alunos, que se negaram a enviar os filhos para estudarem em outro bairro. “As crianças eram tratadas com preconceitos e, se continuasse como estava, elas iriam crescer com vergonha de serem quilombolas, de serem quem são”, explica Benoni Moreira, defensor público da União que acompanha o caso. Outro exemplo de preconceito praticado pela escola, segundo os moradores, foi a criação de um conselho escolar que exclui a participação da comunidade, mas consta entre seus membros um aluno não quilombola, filho de uma funcionária que não é da comunidade. Diante do impasse, o caso foi judicializado e ainda aguarda desfecho. Procurada diversas vezes pela reportagem de CartaCapital, a secretária de Educação de São José do Tapuio, Marcelli Cardoso, não retornou os contatos.
No início de março, houve uma reunião intermediada pela Defensoria Pública com a participação do prefeito, da secretária de Educação e representantes do Quilombo Macacos, onde foi proposto um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), documento que, até o momento, não foi assinado pela prefeitura. Ao contrário, a gestão municipal entrou com uma ação de reintegração de posse na Justiça Federal para desocupar a escola. A Defensoria Pública, então, ajuizou uma Ação Civil Pública para garantir o direito da comunidade e solicitou uma audiência de conciliação. Em abril, aconteceu a audiência, mas não houve acordo. O juiz deu prazo para o Ministério Público se manifestar e instou as partes a continuarem buscando uma solução consensual para o conflito. Segundo Benoni Moreira, o prefeito enviou à comunidade o chefe de gabinete e uma equipe de professores para tentar convencer a comunidade a desocupar a escola.
“Entrei em contato com o chefe de gabinete e sugeri uma audiência com o prefeito, para discutir ponto a ponto da pauta dos quilombolas, o que era e o que não era possível o município atender, e em que prazo. No início de maio, passei uma mensagem para ele, perguntei quando a gente poderia se reunir, se tinha conversado com o prefeito, e ele simplesmente disse que não sabia”, ressalta Moreira, acrescentando que a Secretaria de Educação orientou o vigia da escola a “ficar afrontando a comunidade, com faca em punho, enquanto alguns professores tentavam dar aula”.
Promessa. O programa Aquilomba Brasil se dispõe a atender 214 mil famílias – Imagem: Lula Marques/ABR
A violação de direitos vivenciada pelo Quilombo Macacos não é um caso isolado, pois se repete praticamente nas cerca de 6 mil comunidades quilombolas existentes em todo o País. Um dos casos mais emblemáticos de desrespeito aos afrodescendentes está no município de Alcântara, na Região Metropolitana de São Luís, no Maranhão, onde há a maior presença de territórios quilombolas do Brasil. Com exceção do centro da cidade, praticamente todo o restante da área é rural e quilombola. Há mais de 40 anos as comunidades tradicionais travam luta com o Estado brasileiro, devido à instalação da base de lançamento espacial no pequeno município, cuja população é de pouco mais de 22 mil habitantes. Durante o processo de instalação da base espacial, 32 comunidades foram realocadas para agrovilas em condições inadequadas, uma luta que se arrasta até hoje.
A gravidade das violações dos direitos aos povos originários em Alcântara colocou o Brasil no banco dos réus na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nos dias 26 e 27 de abril, o processo foi julgado pela Corte, mas o resultado ainda não foi divulgado. É dado como certo que o Brasil será condenado pela entidade, tanto que o governo brasileiro esteve presente ao julgamento e fez um pedido público de desculpas. “É preciso que o Estado encare o passivo existente com a responsabilidade de quem gerou esse passivo e promova políticas públicas a partir da necessidade de cada um dos territórios quilombolas, acolhendo as políticas públicas que serão propostas pelas comunidades”, destaca Ronaldo dos Santos, responsável pela Secretaria Nacional de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos, vinculada ao Ministério da Igualdade Racial.
As violações de direitos dos quilombolas em Alcântara (MA) colocaram o Brasil no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Outro caso de grande repercussão é a situação do quilombo Rio dos Macacos, localizado em Simões Filho, município vizinho a Salvador. Na recente visita que o presidente Lula fez à Bahia, a quilombola Rose Meire Silva, aos prantos, ajoelhou-se diante do petista e entregou-lhe um documento denunciando vários tipos de violações sofridas pela comunidade, praticadas, principalmente, por agentes da Marinha brasileira. A disputa pelo território arrasta-se desde os anos 1970, depois que a Marinha instalou uma vila para abrigar 500 famílias de militares em área onde já moravam os afrodescendentes, legítimos donos da área. “O documento está na Secretaria, o presidente Lula pediu para tomarmos providências e em junho vamos fazer uma visita à comunidade. A cena que assistimos na entrega do documento a Lula é fruto do desespero das comunidades quilombolas”, ressalta Santos.
Como acontece com os povos indígenas, os territórios quilombolas são motivo de cobiça de setores como o agronegócio, madeireiros e empresas de mineração, por exemplo. “Assim como os territórios indígenas, os quilombos guardam grande parte dos recursos naturais, seja madeira, floresta, mineração, água, gerando uma disputa grande e conflitos intermináveis”, opina Givânia da Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Ao não regularizar a terra, a posse fica na disputa e muitas vezes as pessoas terminam perdendo suas vidas nessas batalhas”, diz. Segundo Biko Rodrigues, coordenador-geral da Conaq, foram publicadas 39 portarias com a finalidade de demarcar e conceder títulos de terra às comunidades quilombolas, mas apenas três foram concretizadas, seis estão judicializadas e 30 aguardam a ação do governo federal.
Apelo. Lula recebeu uma carta com antigas reivindicações – Imagem: Quilombo Rio dos Macacos/BA
“O reconhecimento e a titulação de territórios quilombolas são desafios de todos nós, mas é preciso destacar que essa política foi interrompida nos últimos anos, causando enorme prejuízo às comunidades. Abrimos o diálogo com a representação quilombola e, juntos, estamos reconstruindo as políticas públicas, tanto para reconhecimento e titulação dos territórios quanto as de desenvolvimento”, explica Cesar Aldrighi, presidente nacional do Incra, órgão responsável pela demarcação das terras, depois que a Fundação Palmares identifica um território afrodescendente e emite a certificação de reconhecimento e proteção dessas comunidades. “Não é só demarcar, precisa fazer a desintrusão para que os quilombolas tenham seus territórios devolvidos”, defende Rodrigues, salientando ser necessário um aporte de 300 milhões de reais para realizar esse processo, mas o orçamento disponível é de 42 milhões de reais, e só há em caixa 580 mil reais.
Em março, o governo Lula lançou o programa Aquilomba Brasil, a ser implantado pelo Ministério da Igualdade Racial. Voltado para atender às demandas dos quilombolas, o programa está dividido em quatro eixos temáticos: acesso à terra, infraestrutura e qualidade de vida, inclusão produtiva e desenvolvimento local, e direitos e cidadania. Segundo a pasta, o programa deve atender cerca de 214 mil famílias. “Onde houve escravidão, teve resistência e esses territórios são dos quilombolas. Pode até estar com outro nome, mas precisam ser reconhecidos como quilombos. O governo precisa proteger esses territórios e oferecer crédito, garantindo a subsistência pela agricultura familiar”, finaliza Biko Rodrigues. •
Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.
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