Cultura
Narrativas sobre o adeus
O tema da finitude, ou da despedida literária, articula-se em três livros lançados recentemente no Brasil


Quando o escritor japonês Kenzaburo Oe faleceu, em março, eu estava dando início à leitura de seu último romance, Adeus, Meu Livro! O volume, que trata de uma despedida, ganhou camada extra de sentido com o desaparecimento de seu autor, aos 88 anos.
Adeus, Meu Livro! é, em certo sentido, o relato de um distanciamento da realidade em direção à literatura, tornado possível pela trajetória do protagonista, Kogito Choko, espécie de duplo ficcional de Kenzaburo Oe, presente em outro livro do ganhador do Nobel, A Substituição ou As Regras do Tagame.
Articulando uma série de outros nomes literários – T. S. Eliot, Sartre, Dostoievski –, bem como um conjunto complexo de temas e ideias – paz e guerra, morte e vida –, Oe captura o ambiente ao redor de seu alter ego no momento em que este se prepara para a “derradeira grande empreitada”. O romance é atravessado por uma sensação de expectativa, pela percepção difusa de que algo está prestes a se encerrar. A literatura é, dessa forma, modulada como uma reflexão sobre a finitude.
O pequeno conjunto vai de Oe, vencedor do Nobel, a um autor alemão dedicado à escrita para crianças
O mesmo tema ecoa em outro livro lançado este ano no Brasil: Ao Amigo Que Não Me Salvou a Vida, de Hervé Guibert, escrito em 1990. A intensidade do relato do escritor francês tem relação direta com a finitude do corpo que escreve: o autor morreu, em decorrência da Aids, em dezembro de 1991, aos 36 anos. “Aquilo significava”, escreve Guibert diante do resultado de mais um teste de sangue, “a morte dando vários passos em minha direção de uma só vez, bem no meu nariz, a morte entre agora e dois anos, se um milagre não acontecesse.”
Ao contrário de Oe, ele não recorre a duplo ou a alter ego. Quem aparece na narrativa é o próprio Guibert, com seu nome e seu percurso; com os livros que publicara; e com o relato, quase em forma de diário, da doença. Amigos vêm e vão, assim como tratamentos, remédios e instituições. Guibert oscila entre o otimismo e o desespero, sem perder de vista, contudo, que o horizonte final é, também aqui, o de um desaparecimento.
Por fim, como a coroar esse passeio pela terra da despedida, chego a O Pato, a Morte e a Tulipa, do alemão Wolf Erlbruch, reconhecido autor de livros infantis morto no ano passado. Embora voltado às crianças, esse projeto, excepcional pela contenção do estilo, pela força das imagens e pela maturidade da visão de Erlbruch, está em uma categoria à parte.
Seu ponto de partida é o encontro de um pato solitário com a morte, de quem se torna amigo. A convivência aprofunda-se e eles trocam observações sobre o mundo: a água, o frio e as árvores. “Está com frio? Posso te esquentar?”, pergunta o pato à morte, que pensa: “Ninguém jamais tinha feito a ela uma proposta parecida”.
O Pato, a Morte e a Tulipa se realiza entre a fábula, a poesia e o diálogo filosófico. Neste caso, o desaparecimento é narrado não pelo viés do lamento, mas pela perspectiva de recomeço que todo fim contém em si.
O distanciamento melancólico da arte mista – com texto e imagem – de Erlbruch gera um instigante contraste com o imediatismo feroz de Guibert. Já sua concisão poética serve de contraponto à narrativa por vezes prolixa de Kenzaburo Oe. Dos três livros, fica a certeza de que as narrativas do adeus são múltiplas e que, da finitude ou da simples ideia dela, sempre brotarão experimentos artísticos. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
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Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.
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