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Rei da sucata

Na busca por uma meta irreal de inflação, Campos Neto, do BC, opera sobre os escombros da economia brasileira

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Ideologia. O drama das montadoras é a ponta do iceberg. Fernando Haddad assopra, Campos Neto morde – Imagem: Cláudio Neves/Portos do Paraná/GOVPR, Marcelo Camargo/ABR e Diogo Zacarias/MF
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Nenhum argumento de ­Joseph Stiglitz, economista ganhador do Prêmio Nobel, foi capaz de convencer o Banco Central do Brasil. Não adiantou também a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, dizer que a meta de 4% de inflação proposta por Lula é adequada para qualquer país. Nada disso levou a autoridade monetária brasileira a questionar suas certezas e alterar a decisão de manter os juros no topo do pódio mundial, em 13,75%, para atingir uma meta de inflação considerada irreal por especialistas abalizados. O clamor dos fatos torna-se, no entanto, a cada dia mais ensurdecedor, com o desmoronamento de parte da estrutura produtiva, transformada em escombros, em grande medida por uma taxa que inviabiliza o investimento na economia.

Stiglitz e Yellen encontraram-se com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no Japão, durante reunião do G-7, grupo das maiores economias do planeta. ­Haddad foi o primeiro ministro da ­Fazenda a participar do encontro e ouviu de Stiglitz os mesmos argumentos expostos pelo Nobel no Brasil, pouco tempo atrás, em evento organizado pelo BNDES, sobre o absurdo de o BC praticar a maior taxa de juros do planeta. Yellen disse a Haddad que uma meta de inflação de 4%, como defende o presidente Lula, “é adequada para qualquer país hoje”. Roberto Campos Neto e subordinados aferraram-se, entretanto, à meta de 3,5% para este ano e de 3% para 2024. Segundo sublinhou o economista conservador Claudio Adilson Gonçalez, presidente da MCM Consultoria, a meta de 3% parece pouco crível e só foi possível manter a inflação nesse patamar em períodos de elevada ociosidade, com desemprego nas alturas e baixa utilização da capacidade instalada.

O varejo afunda, o setor automobilístico faz água e as pequenas empresas estão sufocadas pelos juros

A surdez do BC, ao que se comenta, é de natureza política e ideológica e leva a instituição a não perceber o alarde, no mercado e na mídia, provocado pelas notícias de resultados negativos que derrubaram as cotações de várias ações na Bolsa de Valores na terça-feira 16, dia de balanços desastrosos, na definição de um analista de investimentos. Magazine Luiza e ­Taurus destacaram-se na baixa, em um pregão salvo pela forte alta de Petrobras, após a divulgação de novos critérios para a fixação dos preços do diesel e da gasolina, em substituição ao Preço de Paridade de Importação que vigorou por mais de seis anos, mudança a ser detalhada adiante.

As ações do Magazine Luiza despencaram 20% na terça, após a divulgação do maior prejuízo da companhia em um primeiro trimestre, desde o último lançamento de ações. A Lojas Marisa registrou aumento de 64% no prejuízo, para 149 milhões no mesmo período, e anunciou o fechamento de 91 lojas neste ano. A rede enfrenta pedidos de falência e ao menos dez ações de despejo de imóveis alugados. O Grupo Pão de Açúcar fechou o trimestre com prejuízo de 248 milhões, em contraste com o lucro de 1,3 bilhão do ano anterior. A Justiça aceitou o pedido de recuperação judicial da Light, afundada em uma crise que afeta 33 mil investidores e fundos com 3 milhões de cotistas. Em busca de liquidez, a BRF confirmou a negociação de 2 bilhões de reais em precatórios e ativos judiciais com o banco BTG. Destaque na crise que atinge com força as maiores cadeias de varejo do País, a Lojas Americanas é tema de Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Federal.

O setor de varejo sobressai, mas está longe de ser o único assolado por custos financeiros inviáveis. Perto de 76% das micro e pequenas empresas são afetadas pelos juros exorbitantes e 26% não conseguem pagar as contas todos os meses, mostrou pesquisa do Sindicato da Micro e Pequena Indústria do Estado de São Paulo (Simpi). Com nove paralisações da produção de montadoras em abril e maio e previsões de novas interrupções em junho, a Anfavea informou que as más notícias prosseguirão enquanto os juros continuarem excessivos. A Câmara da Indústria da Construção Civil estima redução de 30% nos financiamentos no primeiro bimestre e, segundo levantamento da Fipe-USP, apenas 40% da população pretendia comprar um imóvel nos próximos três meses, o menor nível desde 2020.

No fio da navalha. A Petrobras mudou a política de preços, enquanto a Light pede recuperação judicial. Galípolo espera a sabatina – Imagem: Light/RJ, Albino Oliveira/MF e Agência Petrobras

A indústria completou mais um trimestre sem crescer e, “além dos espasmos que eventualmente ocorrem, ainda não há sinal de uma nova fase de expansão”, destacou o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial na quarta-feira 16. Apesar do movimento de normalização na cadeia global de insumos, declarou a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo em comunicado, as condições financeiras restritivas pesarão sobre a atividade nos próximos meses. O presidente da entidade, Josué Gomes, declarou-se preocupado com os juros elevados e a fuga de investidores para o México e países asiáticos. Segundo o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, a indústria morrerá se não voltar a exportar. Cabe salientar que, tanto na ata do Copom quanto em outras manifestações, o Banco Central extrapolou suas funções e defendeu restrições aos financiamentos da instituição de fomento.

Campos Neto alega ser só um voto em nove nas decisões do BC, argumento que não para em pé dado o peso decisivo do posicionamento da presidência na tomada de posição dos demais integrantes da diretoria. Tem dito também que, não fossem os juros altos, o País teria inflação de 10% e forte recessão. O presidente do BC argumenta que o sistema de inflação tem meta cadente e que chega a 3% em 2024, e ainda que a meta é determinada pelo governo e o Banco Central tem apenas autonomia operacional para executá-la.

A indústria morrerá se não voltar a exportar, alerta Mercadante, presidente do BNDES

Vários economistas de sólida formação destacam, no entanto, que, além de o ­País estar claramente sob um choque negativo de oferta que abalou o mundo, o Brasil convive com remanescentes da indexação de contratos do passado. Isso significa que ocorrem reajustes anuais de vários acordos com base na taxa de inflação passada e isso acrescenta uma dificuldade para a redução da inflação. Essa peculiaridade torna a meta de inflação de 3% em 2024 muito drástica e fora da realidade econômica.

Considerados referências mundiais, Olivier Blanchard, professor de Economia do Massachusetts Institute of Technology e ex-economista-chefe do FMI, e ­Bradford DeLong, professor de Economia na Universidade da Califórnia e ex-subsecretário do Tesouro dos EUA, defendem o aumento da meta de inflação nos EUA de 2% para 3% e argumentam que uma elevação dessa magnitude teria um custo irrisório. No caso do Brasil, sublinha o economista João Romero, professor do Cedeplar-UFMG, alguns economistas e agentes do mercado financeiro vêm defendendo também uma elevação da meta ao menos para 4%. O descumprimento da meta nos últimos anos evidencia, segundo o professor da UFMG, a rigidez excessiva das metas estabelecidas, o que gera um custo elevado para a sociedade em termos de juros e desemprego, com impacto negativo também sobre o quadro fiscal. É fundamental, diz Romero, que o Conselho Monetário Nacional realize essa revisão o quanto antes para estabelecer uma meta mais crível e realista, o que aumentaria o espaço para redução de juros por parte do BC. Cabe acrescentar: nos governos anteriores de Lula, metas de inflação entre 4% e 4,5% nunca impediram a obtenção de resultado fiscal positivo.

Campos Neto sempre aponta para o papel do Banco Central como mero executor de projeções técnicas embasadas em preços de mercado e em projeções internas, mas a questão é mais complexa, afirma o economista Luiz Fernando de Paula, professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Economia e Política do Iesp/Uerj. “O BC leva em conta principalmente as expectativas inflacionárias do mercado financeiro por meio da pesquisa semanal Focus, organizada pelo próprio banco, e as expectativas de inflação do mercado frequentemente são superiores à inflação efetiva, o que parece evidenciar que o mercado tende a superestimar a inflação futura para que o BC sancione tais expectativas e eleve a taxa de juros.”

Outra questão, prossegue o professor da UFRJ, é que o próprio comportamento da atual administração do BC contribui para acrescentar instabilidade às expectativas do mercado, quando, por exemplo, o presidente da instituição diz que, na realidade, a taxa Selic deveria ser bem maior do que aquela que tem sido praticada, ou quando diz que o problema é “um fiscal mais frouxo”. A postura do BC, argumenta De Paula, afeta negativamente não só as expectativas do mercado, mas os juros mais longos na economia.

A indicação do economista Gabriel Galípolo, atual secretário-executivo do Ministério da Fazenda, para a diretoria de Política Monetária do Banco Central vai contribuir para adicionar novas perspectivas às discussões da diretoria da instituição. Galípolo disse pretender “trabalhar para o melhor do País, orientado à perspectiva de incluir as pessoas de baixa renda no orçamento” e se empenhar na harmonização das políticas fiscal e monetária. Seu nome e o do auditor-chefe do BC, Ailton Aquino dos Santos, indicado para a diretoria de Fiscalização, foram encaminhados ao Senado, para a realização da tradicional sabatina. Segundo o economista Paulo Nogueira Batista Jr., colunista desta revista, as indicações têm chance de alterar positivamente o quadro atual, desde que os indicados “enfrentem os pontos espinhosos e os argumentos frágeis da instituição”.

Baixa. As ações da Magalu despencam, reflexo da crise no varejo. Quase ninguém se salva – Imagem: Redes sociais

Apesar do poder de contenção da economia pela maior taxa de juros real do planeta, que sobe na mesma medida da queda da inflação, há perspectiva de melhora da economia devido, entre outros motivos, à política de investimentos do governo, tradicional catalisadora do investimento privado. O Bradesco reviu, no fim de abril, a sua previsão de crescimento do PIB, de 1,5% para 1,84%. O Itaú reajustou, no início deste mês, a sua estimativa de 1,1% para 1,4%, e o Santander, de 0,8% para 1%. A projeção do Ministério da Fazenda passou de 1,6% para 2%.

As novas projeções de crescimento refletem tanto o anúncio da Medida Provisória do Minha Casa Minha Vida até o fim do mês e de uma nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento nas próximas semanas, com uma reconfiguração das Parcerias Público-Privadas, quanto o aumento do prestígio do País no cenário internacional, com maior atração de investimentos. O BNDES registrou, nos primeiros quatro meses, aumento expressivo das consultas, em 184%, e a instituição espera crescimento ainda maior no próximo ano.

O setor de construções e o mercado imobiliário, afetados por anos seguidos de baixo crescimento e altos juros, depositam esperanças no poder ativador desses segmentos pelo MCMV e o PAC, comprovados nos governos anteriores do PT. A área de gás natural e energias renováveis é um dos segmentos privados que preparam projetos de grande porte. A Associação Brasileira da Indústria Química apresentou ao Ministério de Minas e Energia um projeto de 70 bilhões em novos investimentos, ligados à ampliação da oferta de gás natural.

As forças contrárias ao projeto econômico do governo são, contudo, consideráveis. Na terça-feira 16, a turma da Faria Lima, talvez por considerar inevitável a baixa dos juros, como preveêm tanto os analistas conservadores quanto os círculos de investidores e especuladores em redes sociais, insistia em tornar mais drásticas as cláusulas de restrição ao novo arcabouço fiscal, telegrafadas por seus representantes no Centrão, para deixar a regra encaminhada ao Congresso sob maior grau de controle do mercado financeiro.

O governo aposta na retomada dos investimentos induzidos por programas públicos, como o Minha Casa Minha Vida

Com atuação em várias frentes, o governo busca melhorar também as condições produtivas e macroeconômicas. Um passo importante foi o anúncio, na terça-feira 16, da substituição da Paridade de Preço de Importação por uma nova sistemática de reajustes de derivados de petróleo, que continuará a levar em conta as cotações internacionais, mas vai considerar os custos de produção da própria Petrobras e os preços de exportação e de importação, entre outros fatores. A nova fórmula é uma solução interna da empresa, elaborada com a contribuição das diretorias financeira e de comercialização e tem por base o Sistema do Planejamento do Abastecimento (Planab), que fornece as diretrizes básicas de operação da área de abastecimento da Petrobras.

O anúncio da nova metodologia foi acompanhado da divulgação de redução dos preços do diesel, da gasolina e do gás de cozinha. Calcula-se que o fim da dolarização dos preços internos dos combustíveis terá efeito positivo considerável na redução da inflação, assim como as ações da Companhia Nacional de Abastecimento, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, no sentido de aumentar a produção interna de alimentos por pequenos agricultores. •

Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.

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