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Vidas suspensas

A guerra entre cartéis faz disparar os sequestros no estado mexicano de Zacatecas

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Onde os fracos não têm vez. As forças de segurança mexicanas não conseguem impor a ordem em uma região disputada entre Sinaloa e Jalisco – Imagem: Juan Carlos Cruz/AFP e Enrique Castro/AFP
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María Zapata Escamilla acordou com o barulho de vidro a espatifar. Homens armados em uniforme militar invadiram sua casa, arrastaram seu marido deficiente para fora, juntamente com seu filho de 14 anos, ainda de pijama. E partiram noite adentro.

Duas semanas depois, o corpo brutalizado de seu marido apareceu, ao lado de outros nove. Mas depois de mais de um ano seu filho continua desaparecido. “Fiquei navegando sozinha”, disse ela entre lágrimas. “Se eles me dissessem: ‘Dê sua vida em troca de seu filho’, eu daria.”

A provação de Zapata tornou-se terrivelmente comum em Fresnillo, cidade no estado mexicano central de Zacatecas que tem sido dilacerada por uma batalha entre os cartéis de Sinaloa e Jalisco. Mais de 70 cidadãos desapareceram na cidade mineira entre janeiro e março, quase um por dia, aumento de cinco vezes em comparação com o mesmo período em 2020.

Durante quatro dias em fevereiro, dez homens desapareceram sem deixar vestígios. “Todos os dias há sequestros, todos os dias há tiroteios, todos os dias há mortes. É o terror”, disse Zapata. As famílias das vítimas de Fresnillo dizem que não receberam pedidos de resgate – ou, quando receberam, eram fraudes.

Entre janeiro e março, mais de 70 moradores desapareceram, crianças incluídas

A epidemia em Fresnillo reflete uma tendência nacional: depois de caírem em 2022, os desaparecimentos no México aumentaram quase 30% nos primeiros três meses deste ano, em comparação com o mesmo período do ano passado, mostram dados do governo. A tendência é mais uma prova do fracasso da estratégia de segurança do presidente Andrés Manuel López Obrador. Embora os assassinatos tenham diminuído ligeiramente desde que ele assumiu o cargo, o aumento dos desaparecimentos deixa claro que a violência persiste.

Zacatecas constitui um estudo de caso devastador. Antes relativamente calmo, o estado estratégico, que faz fronteira com outros oito, tornou-se ferozmente disputado por grupos criminosos. Os assassinatos dispararam, corpos aparecem regularmente, cartéis bloqueiam estradas e incendeiam caminhões. O estado carrega um peso político significativo para López Obrador, popularmente conhecido como AMLO. Zacatecas é governado pela família Monreal, poderosa dinastia no coração do partido do presidente, o Morena. Ricardo Monreal, senador federal, é candidato à Presidência. Seu irmão David é governador do estado, enquanto outro irmão, Saúl, é prefeito de Fresnillo.

A violência fez de Zacatecas um foco importante para o governo federal. Em 2021, o Ministério da Defesa anunciou que mais de 400 guardas nacionais e tropas seriam enviados ao estado. Em fevereiro, mais 600 soldados foram mobilizados. O estado continua, porém, uma paisagem infernal. “Zacatecas está arrasado”, disse Leticia Castañeda Cruz, cujo sobrinho foi arrancado de seu carro em plena luz do dia, deixando para trás suas filhas pequenas. “Nós os conhecemos, o senador Ricardo Monreal, e David e Saúl, e toda aquela família que sempre nos governou. Mas eles nos mostraram que falharam.” Os porta-vozes do governador de Zacatecas, David Monreal, e do prefeito de Fresnillo, Saúl Monreal, não responderam a diversos pedidos de entrevista.

Em entrevista, o senador Monreal disse que a violência no México é um problema nacional e deve ser tratado como tal. “Achar que um prefeito pode resolver a questão dos desaparecidos, ou achar que um governador tem capacidade de combater o crime organizado, é não conhecer o país”, disse, acrescentando que os antecessores de seu irmão deixaram os criminosos passarem despercebidos. “Esses bandos do crime organizado tiveram permissão para se instalar, e agora é muito difícil erradicá-los.”

Segundo Claudio Lomnitz, antropólogo da Universidade Columbia que ministra um curso sobre desaparecimento forçado, o sequestro é usado há muito tempo pelo crime organizado em ­Zacatecas como forma de aterrorizar a população e manter o controle, arrecadar fundos com resgates e conquistar novos recrutas. “O que tenho visto no caso de Fresnillo é que há muito recrutamento forçado”, disse. “Porque, por um lado, eles não estão pedindo resgate e, por outro, porque levam vários moradores de uma vez, e isso não faz sentido como sequestro.” De qualquer forma, acrescentou Lomnitz, “não há como isso existir sem uma relação entre o crime organizado e o Estado”.

Farto da inação do governo local, um grupo de mulheres com parentes desaparecidos, incluindo Zapata e ­Castañeda, viajou recentemente à ­Cidade do ­México para se reunir com uma deputada federal do partido do presidente, o ­Morena. Uma a uma, elas contaram suas ­histórias, muitas vezes entre lágrimas: o filho de ­Martina García Aviña, levado antes do amanhecer de novembro passado, o irmão de Luz ­Bernal Orozco, preso em 24 de fevereiro, o sobrinho de Patricia ­Castillo ­Castorena, sequestrado na casa da avó um dia depois. “Parece uma faca no coração”, disse ­Bernal sobre ter um parente desaparecido. “É pior do que a morte, por causa da incerteza que sentimos.”

Medo. Os soldados dos cartéis impõem a própria lei. Matar e sequestrar fazem parte da rotina de uma população abandonada pelo Estado – Imagem: Guarda Nacional do México

Questionada posteriormente sobre a resposta do governo à violência, a deputada Erika Vanessa del Castillo disse que o presidente reconheceu o desaparecimento forçado como uma crise humanitária. “Isso é o que nos foi dado, o que herdamos”, disse, ecoando uma resposta frequentemente dada pelo próprio AMLO. “É impossível resolver isso de um dia para o outro.”

O presidente aumentou o apoio e o financiamento da Comissão Nacional de Busca, encarregada de procurar os desaparecidos. Em 2020, a comissão lançou um banco de dados online de desaparecidos, fornecendo a imagem mais precisa do problema até o momento. O número de comissões de busca em nível ­estadual também triplicou.

Mas a violência continua em espiral e os esforços falharam em fazer uma redução significativa na epidemia de desaparecidos: desde que AMLO assumiu o governo, mais de 40 mil mexicanos foram dados como desaparecidos.

Frequentemente, as famílias são deixadas para navegar em uma burocracia confusa entre a polícia local, promotores estaduais disfuncionais e comissões de busca locais, mas nenhuma das quais parece fornecer respostas. Na reunião do Congresso, representantes da Comissão Nacional de Buscas chegaram para verificar se os desaparecidos haviam entrado no banco de dados nacional – Castañeda não conseguiu encontrar o sobrinho no sistema. Acontece que suas informações foram inseridas incorretamente: seu aniversário e altura estavam errados, seu sobrenome escrito incorretamente. “São três características que me levam a acreditar que não é a pessoa que está sendo procurada”, disse. “Precisamos de autoridades competentes.”

As autoridades não conseguem lidar com a violência dos cartéis

As mulheres deixaram a Cidade do México decepcionadas. Chegando a Fresnillo, a notícia foi mais devastadora: naquela tarde, o segundo filho de ­García Aviña foi levado por homens armados enquanto buscava suas filhas da escola para casa. “Era meu aniversário”, disse mais tarde. “Sinto-me tão desesperada, como se quisesse sair e procurá-los, mas onde posso procurar?”

López Obrador viajou para Fresnillo, em abril, para a inauguração de um novo hospital. Os familiares dos desaparecidos aproveitaram para fazer um protesto. “Nunca antes um presidente abordou o problema da insegurança e da violência como estamos fazendo atualmente”, disse AMLO, em aparente resposta aos gritos dos manifestantes. “Entendo muito bem a preocupação e o desespero dos parentes com seus desaparecidos.”

O presidente não se encontrou, no entanto, com as famílias das vítimas, gerando frustração entre os parentes desesperados. A neta de García Aviña perseguiu AMLO, jogando uma pedra em seu carro quando ele saiu. “Senti-me derrotada, porque tinha muita fé nele”, disse García Aviña, sobre o presidente que já defendeu. “Eu esperava que ele nos ajudasse.” •


*Oscar López é integrante da Alicia Patterson Foundation.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.

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