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QG em ruínas
A cidade de Kherson, sob escombros, vira o centro da prometida contraofensiva ucraniana


O preço da libertação é alto. No vilarejo de Posad-Pokrovske, no sul da Ucrânia, lugar que esteve na linha de frente da guerra, quase todas as casas foram danificadas por bombardeios. Diante de uma igreja pintada de azul, o padre Viktor Kravchuk, 61 anos, estendeu lençóis, colchas e roupas que recolheu de sua casa em ruínas para arejar em frente a um pequeno cemitério, um emaranhado de lilases floridos.
Mykola Barkov, um voluntário, ajuda Kravchuk a limpar uma sala em ruínas com o teto caído e quebrado, onde, antes da guerra, o padre realizava as reuniões do grupo da igreja. Kravchuk conta a história da vila. Descreve a breve ocupação russa no início da guerra, e diz que, depois de os russos terem sido expulsos, o lugarejo tornou-se uma posição de linha de frente para os soldados ucranianos, que foram atingidos por projéteis inimigos durante meses.
Foi apenas em novembro passado, diz o padre, quando o exército ucraniano varreu a província e a cidade vizinha de Kherson, que a ameaça diária à vila foi removida. “Quando os russos chegaram, primeiro nos perguntaram por que não os saudávamos com pão e sal”, acrescenta. “Eles não entendiam que os víamos como ocupantes. Mas, claro, valeu a pena.”
Os amplos avanços ucranianos do outono passado, que viram Kiev retomar a província de Kharkiv e grandes partes da província de Kherson até a divisão do Rio Dnipro, foram alcançados com recursos limitados. Então, as ágeis brigadas de assalto da Ucrânia se deslocaram em comboios de carros particulares para chegar aos locais onde se reuniriam. Com poucos blindados, artilharia e munição, em comparação com as forças pesadas de Moscou, eles viraram a desvantagem a seu favor.
Com a Ucrânia prestes a lançar uma contraofensiva na primavera, as cicatrizes do ataque do outono passado são um lembrete do que está em jogo. Enquanto as trincheiras ocupadas pelas forças russas antes de fugirem de Kherson para o leste, atravessando o rio, desmoronam lentamente sobre si mesmas, há novas escavações agora, cheias de soldados ucranianos.
Sinais de alerta de campos minados salpicam o campo, enquanto nos cemitérios de toda a região as famílias visitam os mortos nos combates. Em um campo não muito distante da periferia leste de Kherson, os restos de um caça a jato abatido, com sua geometria elegante contorcida, afundaram na grama alta.
A evidência de que mais guerra está a se aproximar da Ucrânia – e em breve – é dada pelas estradas cheias de tráfego militar. Transportes de tropas e veículos recém-fornecidos por aliados ocidentais movimentam-se, aparentemente confirmando as declarações de altos funcionários de que a contraofensiva virá em breve e que eles estão “quase prontos”. Para sublinhar essa afirmação, uma série de ataques de drones ucranianos atingiram recentemente depósitos de combustível e logística nas áreas ocupadas pela Rússia.
Ao longo do sul do Rio Dnipro, em torno de Kherson, as baterias de artilharia ucraniana intensificaram o ataque às posições russas do outro lado do rio, enquanto em vários locais correspondentes militares russos e blogueiros dizem ter visto ataques de reconhecimento em força projetados para identificar pontos fracos.
O que também está claro é que este será um tipo diferente de ofensiva, com as brigadas leves do ano passado substituídas por formações maiores e mais fortemente armadas, que imporão novos desafios organizacionais para a luta. O ex-general australiano e analista militar Mick Ryan descreveu recentemente como a contraofensiva poderia se desenrolar. “Gostaria de enfatizar que não haverá apenas um grande empurrão, mas provavelmente várias ofensivas diferentes”, escreveu. “Isso ocorre porque tanto o sul quanto o leste apresentam oportunidades para uma ação ofensiva. Mas também porque os ucranianos vão querer enganar a Rússia sobre seu esforço principal.” Ryan acrescentou: “Mas esta ofensiva será diferente das anteriores. Desta vez, os ucranianos terão de lutar por meio de cinturões de obstáculos mais densos estabelecidos pelos russos no leste e no sul”.
Não foi apenas do lado ucraniano que os preparativos para a luta iminente estiveram em evidência. Na sexta-feira 5, a Rússia anunciou a evacuação de 70 mil civis de áreas próximas à linha de frente no sul da Ucrânia. Culpam uma recente intensificação do bombardeio ucraniano. Observadores ocidentais e ucranianos também dizem ter detectado uma mudança na postura russa, dos esforços de Moscou para avançar com sua ofensiva no leste para uma atitude obviamente mais defensiva, principalmente em meio a relatos de que as forças russas começaram a estocar munições de artilharia.
Isso, por sua vez, provocou um surto impressionante de compartilhamento preventivo de culpa antes da ofensiva ucraniana, como o do chefe do grupo mercenário Wagner, Yevgeny Prigozhin, cujas tropas estiveram na vanguarda dos combates em torno da cidade-chave de Bakhmut, no leste.
A intensa movimentação das tropas locais indica um novo momento do conflito
Após reclamar da falta de munição de suas forças, Prigozhin ameaçou retirar suas forças da cidade em um vídeo bizarro e cheio de palavrões, filmado à noite em frente aos corpos ensanguentados de suas tropas. “Estes são os pais de alguém e os filhos de alguém”, disse, efetivamente acusando o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, e o chefe do Estado-Maior, Valery Gerasimov, de minar seus esforços. “A escória que não nos der munição vai comer suas entranhas no inferno. Pelas dezenas de milhares de mortos e feridos, eles assumirão a responsabilidade diante de suas mães e filhos, eu farei isso. A falta de profissionalismo deles está destruindo dezenas de milhares de russos, o que é imperdoável.”
Embora permaneça uma questão em aberto se Prigozhin realmente retirará suas tropas ou não, o objetivo de seu último vídeo parece claro: distanciar-se dos fracassos crescentes de uma liderança militar russa que, apesar das enormes perdas neste inverno, não conseguiu quase nada.
Pausa. Putin economiza munição, enquanto seus soldados mantêm postura defensiva nas áreas conquistadas – Imagem: Presidência da Rússia, Dimitar Dilkoff/AFP e Alexander Nemenov/AFP
Para os ucranianos mais próximos das linhas de frente, a expectativa crescente produziu um clima estranhamente dissonante, onde coexistem excitação e ansiedade. Em Kherson, onde 23 moradores da cidade e aldeias vizinhas foram mortos em ataques russos na quarta-feira 3, incluída uma investida a um supermercado, os habitantes estocaram mantimentos ou deixaram a cidade de carro ou no trem de evacuação diário.
Senol Gezer, um homem de 56 anos originário da Turquia, disse que ele e sua esposa rumavam para um hotel nas proximidades de Odessa. “Não temos medo. Não queremos ficar em casa. Temos tempo para partir”, afirmou, abastecendo o carro com gasolina. “As autoridades dizem que vão limpar os colaboradores acusados de cooperar com os russos. Mas isso é o que as autoridades estão dizendo. Acho que algo grande vai começar em breve. Estes são os preparativos para isso, muito provavelmente.”
Assim como o padre Kravchuk, Oleksandra Viernenko, de 76 anos, está ciente do que qualquer contraofensiva pode representar para muitos ucranianos ainda sob ocupação. Enquanto examina seu apartamento em ruínas num vilarejo perto da cidade de Snihurivka, abandonado pelas forças russas na última ofensiva, ela vai às lágrimas. “Na minha idade, isso é uma coisa difícil. Ainda não sei como vou viver, mas todos os dias rezo a Deus e rezo pela libertação.”
Nota de CartaCapital: Aparentemente as reclamações públicas de Prigozhin deram resultado. Na segunda-feira 8, o líder do grupo mercenário Wagner informou que as munições requeridas começaram a chegar. Na mesma segunda, 24 horas após as comemorações em Moscou da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, o Kremlin ordenou um maciço ataque de drones camicases a Kiev. Segundo o prefeito da capital ucraniana, Vitaliy Klitschko, cerca de 60 dos teleguiados atingiram a cidade, provocaram uma morte e deixaram cinco feridos.
Não bastasse, a usina nuclear de Zaporizhzhia, controlada pelos russos, voltou ao centro das preocupações. Mais de 1,7 mil moradores dos arredores foram removidos para outras áreas. “A situação está cada vez mais imprevisível e perigosa”, alertou Rafael Grossi, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.
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