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O medo de monstros que não existem

Sem ursos acompanha um cineasta iraniano que, tal e qual Jafar Panahi, é criminalizado pela comunidade

O medo de monstros que não existem
O medo de monstros que não existem
O realizador foi condenado a seis anos de prisão e a 20 de silêncio – Imagem: Imovision
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“O caminho não é seguro. Pra lá tem ursos”, alerta um morador da aldeia ao visitante que caminha pela noite. “Depois de uma xícara de chá, iremos juntos.” Ao final da cena e do diálogo em que o visitante é avisado de outros riscos, desta vez morais, o simpático morador declara: “Não há ­necessidade de eu te acompanhar”. O visitante recua: “E os ursos?”

“São histórias inventadas para nos assustar. Nosso medo anima os outros. Sem ursos!”, insiste o morador. O diálogo sintetiza o espírito do mais recente filme do cineasta iraniano Jafar Panahi, em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 11.

Panahi, em 2010, foi condenado a seis anos de prisão e 20 anos de silêncio por fazer “propaganda contra o regime”. A pena implica não filmar, escrever roteiros, dar entrevistas ou sair do país.

Mesmo assim, Panahi dirigiu, desde então, seis longas-metragens e um punhado de curtas, nos quais converteu a prisão em tema e forma de expressão. Sem Ursos prolonga este projeto reflexivo com um retrato que se aproxima do diário filmado.

O filme acompanha um cineasta chamado Panahi, interpretado pelo próprio Panahi, vivendo um banimento tal e qual o próprio realizador. O personagem decidiu sair de Teerã e encontra-se numa pequena aldeia na fronteira com o Cazaquistão. Ali, faz um novo filme a distância, conversa e fotografa habitantes e costumes.

A presença desse estranho logo cria estranhamentos e ele passa a ser acusado de ter feito uma fotografia considerada prejudicial para a ordem local. Que direitos tem um indivíduo quando a comunidade o criminaliza, mesmo sem provas? A quais riscos ele está exposto?

A suspensão dos limites entre documentário e fabulação não é novidade no cinema iraniano desde Close-Up (1990), de Abbas Kiarostami. Nem Panahi retoma o recurso para oferecer prazer conceitual a cinéfilos.

Tal como no diálogo sobre ursos, o filme aproxima realidade e ficção, valores tradicionais e modernos, mundo rural e urbano, tecnologia e rudimento para indagar se os polos são de fato opostos. A partir de uma situação muito simples e sem recorrer a malabarismos formais, ­Panahi questiona as fronteiras, mostrando as segmentações e exclusões que transformam o outro em inimigo e ameaça.

Sem Ursos não é apenas mais um filme de um cineasta falando sobre si mesmo. Nem outra denúncia de governos que não toleram o dissenso. É também uma fábula sobre temores, sobre medos de monstros que não existem. •

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O medo de monstros que não existem’

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