Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

Opinião

assine e leia

Perdemos o rebolado

O futebol tem mais criatividade e arte nos centros mais ricos do mundo, para onde confluem os maiores talentos de todos os lugares

Perdemos o rebolado
Perdemos o rebolado
Experiência. Marcelo mostra o valor da qualidade técnica - Imagem: Mailson Santana/Fluminense F.C.
Apoie Siga-nos no

Depois de dois feriadões, com direito a superexposição do futebol, a ressaca chegou por meio dos “milionários” do River Plate, da Argentina, em sua surpreendente derrota para o Fluminense, pelo placar de 5 a 1.

O Maracanã lotado no dia da partida, com 62.505 pessoas – foi seu segundo maior público no Novo Maracanã, reinaugurado em 2013, após as obras para a Copa do Mundo.

Antes disso, às vésperas do feriado prolongado, houve o placar inusitado de 8 a 2 infligido pelo Flamengo ao paranaense Maringá, pela Copa do Brasil.

Mas esse mesmo Flamengo, quem diria, perderia para o Botafogo poucos dias depois, também no Maracanã, em partida pelo Brasileirão. O 3 a 2 foi uma surpresa até mesmo para o Botafogo, rival histórico.

Essa rivalidade entre Flamengo e Botafogo pode passar um tempo empalidecida, mas renasce com toda força de tempos em tempos. E foi o que aconteceu agora.

Tivemos, além das partidas mencionadas, uma série de outros jogos decisivos entre grandes clubes, às vezes um sobreposto a outro, como no caso de ­Fluminense vs. Fortaleza e Corinthians vs. ­Palmeiras, ambos pelo Brasileirão, no sábado 29.

Não me lembro de, outras vezes, ter assistido a dois jogos seguidos, passando quatro horas sentado no sofá, diante da televisão. Trata-se de algo inédito para mim.

No jogo entre Flamengo e Botafogo, confesso que me surpreendi muito.

Pelo perfil dos dois treinadores estrangeiros (o argentino Jorge Sampaoli e o português Luís Castro) e as demais características envolvidas no clássico, eu realmente acreditava que veríamos uma atropelada, marcada pela palavra de ordem atual: intensidade. Mas não foi bem isso.

O Botafogo, que andava me deixando desconfiado ao apostar naquela história de jogador a metro e a quilo, não partiu para cima do Flamengo. Ao contrário, “fechou-se em copas”, como se diz na gíria dos jogos de baralho. Com essa opção levou à desilusão os torcedores rubro-negros, que ainda estavam no clima da vitória retumbante na estreia do irrequieto Sampaoli – com a vitória sobre o Ñublense, por 2 a 0.

O que entrou em campo, no fundo, foi a disputa entre o futebol dito “moderno”, regido pelo mantra da intensidade, e o futebol representativo de seu lugar de origem, sua cultura. Esse segundo modelo tem agora, inclusive, a defesa justificada pelo Fluminense de Fernando Diniz, que anda encantando os admiradores do futebol arte.

É bastante significativo que o Fluminense tenha despertado nos amantes do futebol o desejo de assistir a seus jogos, independentemente das cores de suas paixões. Repito a fala do querido sambista João Nogueira, rubro-negro dos quatro costados: “Cansei de sair do Méier pra ver o Garrincha jogar”!

O que se passa no futebol brasileiro reflete e é reflexo do cenário mais amplo do futebol mundial. A composição das seleções que disputam a Copa do Mundo, com jogadores vindos de continentes diversos, mostra com clareza o quanto o componente econômico dita o rumo que as coisas vão tomando em todas as áreas.

Apesar dos recursos atuais de preparação física, materiais esportivos e tudo o mais, os esportes são mais criativos e mais artísticos nos centros mais ricos, para onde confluem, de modo superconcentrado, os maiores talentos de todos os lugares.

A outra face dessa moeda é que os países que têm história rica passaram a ser fornecedores de suas revelações, amadurecidas à força, quase sempre com uma intensidade questionável que torna os esportes, especialmente os de contato, de alto risco. Tal quadro está longe de ser uma exclusividade do Brasil. A Argentina e outros hermanos subdesenvolvidos passam pelo mesmo dilema.

Podemos dizer que aquela fala antiga, do período áureo do nosso futebol, quando chamávamos os jogadores europeus de “gringos de cintura dura”, passou agora para o nosso lado. Os Maradonas, Messis e Neymares da vida foram cedo para o ­lado de lá e nós, por aqui, ficamos na ­saudade­ dos nossos Garrinchas e Pelés. Colonizados que continuamos a ser, perdemos o rebolado e ficamos com as cadeiras duras.

Isso tudo é para dizer que é animador que o Fluminense tenha trazido de volta o seu treinador Fernando Diniz, prestigiando assim uma possível retomada dos nossos traços culturais.

Cresce também a esperança do repatriamento de craques que foram embora bastante jovens e que, ao voltar, podem emprestar às nossas equipes o talento burilado lá fora. •

Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s