Mundo
Burburinho no fim da festa
Manifestantes pedem a recontagem de votos nas eleições vencidas, outra vez, pelo Partido Colorado


Assim que as urnas começaram a ser abertas no Paraguai, no domingo 30, a Avenida 25 de Maio, em frente à Associação Nacional Republicana, foi tomada por militantes do Partido Colorado. Erraram as pesquisas. A decisão não foi no olho eletrônico, como apontavam. O governista Santiago Peña obteve 42% dos votos, quase 500 mil a mais que o segundo colocado, e manteve a espantosa longevidade da legenda no poder. São quase 70 anos, excluído o brevíssimo governo do progressista Fernando Lugo, encurtado por um golpe parlamentar de fazer inveja aos mentores do impeachment de Dilma Rousseff.
A mesmice eleitoral no Paraguai, disputa de turno único, só foi interrompida por conta do arroubo de Payo Cubas, imitação barata de Jair Bolsonaro que acabou em terceiro lugar, com 22%, de colocar em dúvida a lisura das eleições e exigir a recontagem dos votos. Instigados pelo candidato, partidários de Cubas realizaram protestos na capital, Assunção, na noite da segunda-feira 1° e bloquearam estradas em várias partes do país. Outros concorrentes enxergaram uma oportunidade e se juntaram às manifestações. Em dois dias, passava de 40 o número de presos devido ao confronto com as forças de segurança. “Em eleições anteriores houve denúncias de fraude, mas sem mobilização. Agora é diferente, não sabemos até quando os manifestantes estarão dispostos a brigar. As próximas horas e dias serão decisivos. Payo é fascista, mas quem está nas ruas representa um movimento popular”, diz a produtora Mirna Armoa. Detalhe: esta foi a primeira disputa em que os paraguaios utilizaram urnas eletrônicas.
Os colorados fizeram barba, cabelo e bigode. Além de manter a Presidência, a legenda elegeu 15 dos 17 governadores e conquistou a maioria na Câmara e no Senado. “Não há paralelo na história da região de um partido com tanta hegemonia. O controle sobre grande parte dos 300 mil funcionários do Estado e o dinheiro das oligarquias são algumas das razões para esta acumulação política. São ainda muito sedutores ao parecerem estar próximos do povo”, lamenta o geógrafo Victor Bañuelos, morador de Capiatá.
Nos últimos meses, o governo pagou bônus milionários aos servidores públicos, enquanto o partido, de grande capilaridade no país, usou essa vantagem para atrair o eleitorado. Como trunfo, os governistas citam os investimentos em infraestrutura e a relativa estabilidade política e econômica, principalmente na comparação com os vizinhos Brasil e Argentina. “Temos vocação de poder. O coloradismo é muito unido, Santi tem formação para sustentar o peso da Presidência. Ele é uma pessoa e Horácio Cartes é outra”, defende a senadora Blanca Ovelar, citando o ex-presidente e líder colorado, tutor do candidato eleito. O caloroso cumprimento de Peña a Cartes no discurso de vitória sugere que a possibilidade de extradição do empresário mais poderoso da nação, acusado de crimes internacionais, está praticamente descartada.
O candidato governista Santiago Peña obteve 42%. Só há um turno
A força da direita local, apoiada pela Igreja, militares, policiais e latifundiários, sintetizada na expressão “abraço republicano”, impediu que o Paraguai desse uma guinada progressista como as principais economias da América do Sul. “Nem os mártires da pandemia, o cansaço de anos e os mais jovens foram suficientes para uma mudança. Estamos longe disso”, desanima-se o artista David Muñoz, eleitor da Concertación, cujo candidato, o centrista Efrain Alegre, alcançou 27% dos votos.
Quem também inicia o novo ciclo debilitada é a esquerda, cuja bancada no Senado caiu de oito para uma cadeira. Nem Lugo, afastado da cena política por motivos de saúde, conseguiu manter o posto de senador. “Nosso compromisso e ideias não se iniciam ou acabam na eleição. Superamos momentos mais difíceis do que este e voltaremos a fazê-lo”, afirma Esperanza Martínez, única parlamentar da Frente Guasú na próxima legislatura.
No dia seguinte ao pleito, feriado de 1º de Maio, ao menos 200 mil paraguaios buscavam oportunidades de trabalho, prioridade dos cidadãos. Na educação, segundo o ministério, metade das crianças não consegue acesso à escola nos anos iniciais, enquanto na esfera social, 2 milhões de paraguaios vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza, revela o Instituto Nacional de Estadística. Os bairros de luxo de Assunção contrastam com o abandono do centro histórico, sufocado com a falta de financiamento dos espaços culturais, especulação imobiliária e abandono de inúmeras obras. Somente na capital, 100 mil moradores vivem sob terrenos inundáveis. Muitas dessas famílias residem a poucos metros da moderna orla da Costanera, às margens do Rio Paraguai.
A desigualdade é tanta que o próprio Peña promete políticas de subsídios. Parte dos problemas de financiamento do Estado, alegam as autoridades, será resolvida com o novo tratado de Itaipu, cuja negociação acontece em agosto entre o eleito e Lula, e com a expectativa de geração de novas receitas para os paraguaios. “Itaipu tem o peso de sustentar toda uma economia por aqui. Para o Brasil, é um ponto sensível pelo viés da crise energética, mas são pesos muito diferentes”, diz a ativista pela soberania energética Viviana Valdez. A usina, construída durante períodos ditatoriais nas duas margens, concentra os mais altos salários do funcionalismo local, os chamados Barões de Itaipu. “Aqui você vai encontrar, em algumas casas, uma parede com uma foto de Alfredo Stroessner e do outro lado uma de Lugo, o último a negociar um bom contrato para a nossa soberania. No meio estará um santo, eis um pouco da complexidade das coisas por aqui”, resume Valdez.•
Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Burburinho no fim da festa’
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