Marjorie Marona

Professora de Ciência Política da UNIRIO e pesquisadora do QualiGov - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável.

Opinião

assine e leia

Justiça eleitoral, guardiã

O TSE construiu uma jurisprudência que revela, em perspectiva comparada, experiência bem-sucedida de defesa judicial da democracia

Justiça eleitoral, guardiã
Justiça eleitoral, guardiã
A sede do TSE, em Brasília. Foto: LR Moreira/Secom/TSE
Apoie Siga-nos no

Na reta final, a ação cujo desfecho pode tirar Bolsonaro das eleições de 2026 mobiliza lideranças políticas e a opinião pública e suscita mais uma rodada de discussões sobre o desempenho da Justiça Eleitoral vis-à-vis a democracia brasileira.

No Brasil, a governança eleitoral é altamente concentrada em instituições judiciais especializadas. O amplo rol de atividades que cria e mantém o quadro institucional que estrutura a competição eleitoral é desempenhado pela Justiça Eleitoral, de forma exclusiva ou concorrente. A determinação dos parâmetros legais das eleições, por exemplo, é dever do Legislativo, mas o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) edita atos normativos que, na prática, funcionam como leis.

As atividades de governança eleitoral concentram-se em garantir oportunidades para que distintos grupos políticos ganhem eleições e, principalmente, tenham sua vitória reconhecida pelos adversários. A governança eficaz, por si só, não garante eleições justas – questões sociais, econômicas e políticas afetam o processo e a integridade da disputa. Sem governança eleitoral eficaz, no entanto, não há eleição justa. Não por acaso a Justiça Eleitoral se autoproclama a “Justiça da Democracia”, buscando angariar apoio público para seu desempenho, cada vez mais destacado.

Nas últimas eleições presidenciais, as principais candidaturas sofreram algum tipo de impugnação judicial. A chapa Dilma/Temer, vitoriosa em 2014, esteve na mira do TSE depois que delações na Operação Lava Jato apontaram irregularidades no financiamento da campanha pela reeleição. Também como desdobramento da Lava Jato, Lula foi impedido de concorrer em 2018. Bolsonaro, por sua vez, responde a 16 processos no TSE envolvendo acusações de abuso de poder político e econômico nas eleições de 2022, da qual saiu derrotado. Em ao menos um deles é iminente a decretação de sua inelegibilidade pelos próximos oito anos, aquele em que é acusado de utilizar a estrutura do Palácio do Alvorada para a reunião com embaixadores, na qual atacou a integridade do sistema eleitoral.

Há uma peculiaridade neste caso, a suscitar reflexão que extrapola os impactos do desempenho do TSE na ­disputa eleitoral, propriamente, adentrando em considerações acerca do papel dos tribunais em contextos de instabilidade democrática, com recurso à ideia de democracia militante.

Originalmente proposta por Karl ­Loewenstein em face da ascensão do fascismo na Europa, a ideia voltou a ocupar o debate público em razão dos processos contemporâneos de autocratização, indicando a necessidade de que barreiras mais elevadas que aquelas providas pelos mecanismos de freios e contrapesos e outras ferramentas contramajoritárias sejam erguidas em face da ação de grupos radicalizados e suas lideranças, como forma de resistência à erosão das democracias. Assume-se a possibilidade de restrição a direitos fundamentais sempre que a democracia estiver sob ataque em razão do abuso no exercício desses mesmos direitos – que a viabilizam. Destacam-se as atividades de interpretação e aplicação da lei, típicas dos tribunais, visando a parametrizar os mecanismos de autodefesa democrática, para potencializar seu efeito neutralizador em face das agressões autoritárias. Nesse sentido, uma eventual condenação de Bolsonaro viria coroar o esforço do TSE, que tem afirmado jurisprudência militante na autodefesa da democracia a ser festejada.

O tribunal firmou precedente ao fixar conteúdo próprio e autônomo para o tipo de ilícito no qual supostamente incorreu Bolsonaro, referente à garantia da normalidade das eleições e da higidez do processo eleitoral, desprendendo-se, portanto, da existência de violação à igualdade de chances entre os candidatos. Ainda, no uso da sua competência normativa, positivou a existência do ilícito eleitoral de desinformação contra o processo eleitoral (Resolução 23.610/2019). A verdade é que, acionando, com alguma dose de abertura interpretativa, a caixa de ferramentas disponibilizadas pelo paradigma de democracia militante, o TSE construiu jurisprudência que revela, em perspectiva comparada, uma experiência bem-sucedida de defesa judicial da democracia. No Brasil, se o regime democrático ainda não sucumbiu à onda de autocratização muito se deve à postura militante da Justiça Eleitoral, coordenada a ações afins no STF. A condenação de Bolsonaro, se vier, chega como mais um passo na trilha da estabilidade democrática. •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo