Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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A ignorância e o HPV

A atual resistência à vacinação contra o vírus causador do câncer de colo do útero é fruto da inaceitável desestruturação do Programa Nacional de Imunização

A ignorância e o HPV
A ignorância e o HPV
A presidenta Dilma Rousseff durante cerimônia de Lançamento da Vacinação Nacional contra o HPV
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O Programa Nacional de Imunização (PNI) do Brasil está completando 50 anos e era considerado, até pouco tempo, o mais exitoso do mundo pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas, desde 2016 e, em particular, no último governo, sob o império do negacionismo, foi profunda e irresponsavelmente desestruturado.

A expressão disso foi a recente divulgação, pelo Ministério da Saúde, de que 27 milhões de doses de vacina foram descartadas por vencimento de prazo e que, nos próximos meses, mais 20 milhões de doses terão o mesmo destino, com prejuízo estimado em 2 bilhões de reais. Estamos diante de um escárnio com os recursos públicos, de um crime contra a saúde dos brasileiros.

Outra notícia extremamente preocupante foi o alerta dado pelo Unicef de que, nos últimos três anos, 1,6 milhão de crianças brasileiras não tomaram a vacina DPT, que protege contra difteria, tétano e coqueluche. De acordo com o órgão, isso indica que essas crianças deixaram também de tomar todas as demais vacinas obrigatórias no Calendário Nacional de Vacinação.

Trata-se de uma situação de extrema vulnerabilidade, com o risco de reintrodução de doenças que estavam erradicadas, como é o caso da poliomielite, entre outras que poderiam ser prevenidas ou controladas se pudéssemos retomar os níveis de cobertura que vínhamos obtendo até 2015.

Quero destacar outro grave problema. Estamos perdendo a oportunidade de redefinir o futuro das novas gerações no que diz respeito à luta contra o câncer. Afinal de contas, desde 2014, o PNI passou a garantir a vacina contra o HPV.

Esse vírus é transmitido pela relação sexual ou pelo contato direto com a pele ou as mucosas infectadas e é responsável pela quase totalidade dos casos de câncer de colo do útero, por mais de 90% dos casos de câncer anal e por 63% dos cânceres de pênis. Como é muito contagioso (estima-se 700 mil novos infectados a cada ano), é importante que a vacina seja tomada entre 9 e 14 anos, antes do início da atividade sexual e quando a resposta imunológica contra o HPV é melhor.

Essa vacina protege meninas e mulheres contra o câncer de colo do útero, vulva, vagina, faringe e boca. Já os meninos que recebem duas doses desenvolvem proteção contra o câncer de pênis, de orofaringe, boca e ânus, entre outros tipos.

Boletim lançado recentemente pela Fundação do Câncer indica, porém, a enorme dificuldade encontrada na vacinação contra o HPV. Em todo o País, a cobertura vacinal das meninas entre 9 e 14 anos alcança 76% para a primeira dose e 57% para a segunda. Entre os meninos (entre 11 e 14 anos), a adesão é ainda menor: 52% na primeira dose e 36% na segunda, muito abaixo do recomendado.

Todas as regiões brasileiras e capitais estão com cobertura abaixo da meta estabelecida pelo PNI. As regiões Norte e Nordeste, que possuem os piores indicadores para esses tipos de câncer, apresentam também as menores coberturas vacinais.

Segundo Alfredo Scaff, médico epidemiologista da Fundação do Câncer, é plenamente possível eliminar esse câncer, mas, para tanto, será preciso vacinar todas as crianças nas faixas etárias recomendadas e garantir cobertura entre 80% e 90%. Sem isso, o Brasil não conseguirá atingir a meta estabelecida até 2030 para eliminação da doença, que constitui grave problema de saúde pública.

De acordo com o Instituto Nacional do Câncer, o câncer de colo do útero é a terceira causa de morte de mulheres por tumores no Brasil. O número de casos novos esperados no período entre 2020 e 2022 foi de 16.590 por ano. O câncer de colo do útero é o segundo mais incidente nas regiões Norte (21,20/100 mil habitantes), Nordeste (17,62/100 mil) e Centro-Oeste (15,92/100 mil). Na Região Sul (17,48/100 mil) ocupa a quarta posição e, no Sudeste (12,01/100 mil), a quinta posição.

Em meio ao contexto de desinformação e negacionismo, torna-se imperioso que o governo federal, liderado pelo Ministério da Saúde, assim como governos estaduais e municipais, escolas, entidades da sociedade civil, personalidades e movimentos sociais – em particular os que militam em torno da defesa da vida e dos direitos das mulheres – ergam essa bandeira.

Os inimigos a vencer são a falta de informação e a ignorância, já que há quem imagine que vacinar adolescentes e pré-adolescentes seria um estímulo à iniciação sexual precoce.

É inaceitável perder a luta contra tipos de câncer que poderiam ser eliminados e para os quais temos vacina gratuita, segura e disponível pelo SUS. •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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