Mundo
Guerra de facções
Chega ao fim o precário equilíbrio entre os grupos militares que dividem o poder no Sudão


Sudão mergulhou numa crise violenta há muito temida, no sábado 15, quando uma luta amarga pelo poder pareceu estourar entre as duas facções principais do regime militar no governo. Ao menos 25 mortes foram registradas nos confrontos no vasto e estratégico país do Leste africano durante intensos combates entre as forças armadas sudanesas e os paramilitares da Força de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), de acordo com o Comitê de Médicos do Sudão, uma ONG local. Atualização de CartaCapital: até o fechamento desta edição, o número de mortos passava de 180.
A luta ameaça desestabilizar não apenas o Sudão, mas grande parte da região, além de exacerbar uma batalha por influência que envolve as principais potências do Golfo, bem como os Estados Unidos, a União Europeia e a Rússia. As forças armadas sudanesas são amplamente leais a Abdulfatah al-Burhan, o atual governante de fato do país, enquanto a RSF, uma coleção de milícias, segue o controverso ex-chefe guerreiro Mohamed Hamdan Dagalo, mais conhecido como Hemedti. “Acalmou um pouco, mas não parece que vai diminuir. Eles começaram a atirar nas primeiras horas e eu pensei que ainda poderiam ser escaramuças, mas então a força aérea se envolveu e os dois comandantes foram à televisão e sua linguagem não indicava que buscavam uma solução pacífica”, disse a analista Kholood Khair, em Cartum. “Há muita propaganda de guerra e desinformação de ambos os lados… mas muitos países da região veem isso como um fim de jogo militar com as forças armadas sudanesas superando a RSF. Hemedti também pode ter superestimado seu apoio popular. A população do Sudão quer democracia, mas não acredita que nenhum desses atores vá trazê-la.”
A luta pelo poder tem suas raízes nos anos anteriores ao levante de 2019 que depôs o governante ditatorial Omar al-Bashir, que construiu formidáveis forças de segurança e deliberadamente as colocou umas contra as outras. Quando o esforço de transição para um governo democrático liderado por civis vacilou após a queda de Bashir, um eventual confronto foi inevitável, com diplomatas em Cartum alertando, no início de 2022, que temiam tal surto de violência. Nas últimas semanas, as tensões aumentaram.
Duelo. Não há lugar no mesmo governo para Hemedti e Al-Burhan – Imagem: Ashraf Shazly/AFP e Redes sociais
A agência de notícias Reuters informou na noite de sábado que o exército havia lançado ataques aéreos em uma base pertencente às Forças de Apoio Rápido, em Omdurman. “Isso não parece que vai parar, a menos que alguns verdadeiros pesos pesados se envolvam na mediação de um cessar-fogo”, disse Khair.
Yassir al-Awad, pai de quatro filhas e residente em Cartum, disse a The Observer que a cidade assiste a uma luta de poder entre líderes militares. “O povo sudanês não deveria participar, mas, infelizmente, fomos arrastados para isso. Como povo sudanês, não temos nenhum interesse nisso. Seja qual for o vencedor, no fim nós seremos os perdedores.” Abulilah Musa, estudante de Medicina que ficou confinado em sua casa no sábado, disse que esperava a guerra desde o fim da revolução de 2019. “O que aconteceu hoje é apenas o começo, e não ficarei surpreso se continuar por mais cinco anos. Estamos entrando em um futuro muito sombrio.”
Os detalhes exatos dos acontecimentos no sábado não são claros, mas relatórios sugerem que o exército pode ter atacado uma base militar da RSF no sul de Cartum pela manhã, provocando tiroteios em outras partes da cidade nas horas seguintes. Ao meio-dia, as batalhas eram intensas no aeroporto internacional, no centro da capital, onde os voos foram interrompidos depois que dois jatos sauditas foram atingidos. “Combatentes das Forças de Apoio Rápido atacaram vários acampamentos do exército em Cartum e em outros lugares do Sudão”, disse à Agência France Presse o porta-voz do exército, brigadeiro-general Nabil Abdallah.
Em uma declaração anterior, a RSF afirmou ter conseguido controlar o palácio presidencial e o estratégico aeroporto Al-Obyied, no norte do estado de Kurdufan, embora o exército negasse que fosse verdade. A força paramilitar também afirmou ter controlado o aeroporto de Merowe, ao norte da capital. Relatos da mídia sugeriram que cerca de 45 soldados do exército sudanês foram feridos em Merowe durante intensos combates entre as duas forças.
O conflito provocou até o momento mais de 180 mortes
A RSF foi fundada por Bashir para esmagar a rebelião em Darfur, que começou contra a marginalização política e econômica da população pelo governo central há mais de 20 anos. Suas forças também eram conhecidas pelo nome de Janjaweed, que se tornaram associadas a atrocidades generalizadas. Em 2013, Bashir transformou os Janjaweed em uma força paramilitar semiorganizada e deu aos líderes patentes militares, antes de enviá-los para esmagar uma rebelião no sul de Darfur e, em seguida, despachar muitos para lutar na guerra no Iêmen.
Centenas de paramilitares da RSF foram enviados para lutar na Líbia ao lado do exército do general Khalifa Haftar, no leste. A RSF, liderada por Hemedti, e as forças militares regulares comandadas por Burhan cooperaram para derrubar Bashir em 2019. A RSF então dispersou uma manifestação pacífica em frente ao quartel-general militar em Cartum, matando centenas e estuprando outras dezenas. Um acordo de compartilhamento de poder com os civis que lideraram os protestos contra Bashir, que deveria provocar uma transição para um governo democrático, foi interrompido por um golpe em outubro de 2021. Mais de cem foram mortos em novos protestos.
Hemedti tem sob seu comando uma enorme riqueza, derivada da exportação de ouro de minas ilegais, e dezenas de milhares de veteranos endurecidos pela batalha, alguns ensanguentados nas campanhas genocidas em Darfur. Ele há muito se irrita com sua posição como vice oficial. Um pomo de discórdia particular entre as facções em guerra é o processo de integração da RSF nas forças armadas regulares.
Há uma dinâmica regional em jogo também – com grandes dimensões geopolíticas, pois a Rússia, os Estados Unidos, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e outras potências lutam pela influência no Sudão. O ex-primeiro-ministro sudanês Abdullah Hamadouk alertou que os combates no país podem resultar em uma guerra regional e pediu calma. Al-Awad disse que “as influências regionais são muito evidentes neste conflito, cada uma delas está sendo apoiada por alguns países ao nosso redor. Não é coisa sudanesa, parece uma guerra por procuração”.
A União Africana disse que “as coisas saíram perigosamente do controle” e pediu o fim imediato das hostilidades. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Guerra de facções’
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