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“Ortega é manipulador”

O líder sandinista não tem ideais de esquerda, só interesses particulares, diz Mónica Baltodano

“Ortega é manipulador”
“Ortega é manipulador”
Traição. Segundo Baltodano, perseguida pelo regime, o casal Ortega hoje busca o poder pelo poder – Imagem: Thiago Druzian/PSOL na Câmara e Jairo Cajina/Presidência da Nicarágua
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Ícone da esquerda nos anos 1980 e hoje acusado de autoritarismo e violação dos direitos humanos por organizações e políticos dos mais variados matizes, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, enfrenta uma oposição dedicada a denunciar ao mundo a situação do país. Integrante do grupo de 94 opositores que, em fevereiro, tiveram seus bens confiscados e foram declarados apátridas pelo governo nicaraguense, a ex-guerrilheira Mónica ­Baltodano acaba de passar pelo Brasil. Uma das três mulheres condecoradas como Comandante Guerrilheira após o triunfo da Revolução Sandinista em 1979, ­Baltodano, hoje com 70 anos, defende, na entrevista a Maurício Thuswohl, o “protagonismo ativo” dos setores populares no combate ao que chama de ditadura.

CartaCapital: A senhora denuncia o “rigor autoritário” do governo ­Ortega. Como explicar a deterioração dos ­ideais da revolução?
Mónica Baltodano: A deterioração pode ter começado antes que nos déssemos conta, pois, como hoje sabemos, foram denunciados abusos cometidos antes mesmo do triunfo da revolução. O personagem ­Daniel Ortega para muitos representa a imagem do revolucionário apegado aos ideais e interesses dos setores populares. Mas, nos anos 1990, ele mudou claramente para um projeto personalista centrado no controle do poder pelo poder. Com o slogan “governar desde baixo”, seguiu na luta por espaços de poder e privilégios, utilizando as organizações populares e sua influência nos sindicatos e entidades camponesas.

CC: Como se deu o processo?
MB: A deterioração dos ideais sandinistas expressou-se na supressão de uma direção coletiva por uma direção unipessoal, passou pelo controle autoritário, primeiro do partido, depois das organizações de massa. E, finalmente, na realização de um pacto com o presidente Arnoldo Alemán, no qual Ortega atuou com instituições do Estado, como a Corte Suprema de Justiça, o Conselho Supremo Eleitoral, a Controladoria da República e a Assembleia Nacional, em troca de dar, entre aspas, governabilidade ao regime de Alemán, um dos presidentes mais corruptos após a revolução. Daniel e sua família foram se convertendo em poderosos senhores. Ele precisa do poder não somente porque é ambicioso, mas também por necessidade de defender seus interesses materiais. Os postulados originais da revolução tinham como elemento dinamizador uma economia mista com a convivência entre formas de propriedades privadas e outras socializadas. Outros de seus pilares eram o pluralismo político e a aposta na democracia. Este é um tema essencial que deve ser debatido pela esquerda.

A ex-guerrilheira denuncia a corrupção e a supressão das liberdades na Nicarágua

CC: De que forma as denúncias têm sido recebidas?
MB: Nestes cinco anos, desde as denúncias apresentadas no informe do grupo de especialistas independentes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que revisou tudo o que havia se passado entre abril e junho de 2018, as reações no mundo têm sido diversas. É certo que governos de direita condenaram as violações destacadas no informe. Nos últimos meses e a partir, sobretudo, da ascensão do presidente Gabriel Boric no Chile, houve também um giro nos governos de esquerda para denunciar de forma direta e clara que as violações cometidas por ­Ortega na Nicarágua são incompatíveis com os propósitos democráticos e progressistas. Havíamos recebido o apoio do ex-presidente Pepe Mujica e de parlamentares de esquerda do Uruguai. Também recebemos apoio na Argentina e, agora, no Brasil.

CC: Por que parte da esquerda ainda considera Ortega um herói?
MB: O sucesso do Foro de São Paulo realizado em Havana, em 2018, deu respaldo a Ortega, que forjou o relato de que o que havia acontecido na Nicarágua era um golpe de Estado dirigido pela CIA. O que realmente havia ocorrido eram protestos que se iniciaram em 2017 com pequenas marchas, respondidas, em 2018, com tropas de choque, golpes e rupturas de cabeças de anciãos que protestavam pela reforma da previdência. Foram quase cem assassinatos. Lamentavelmente, o Foro de São Paulo e alguns partidos de esquerda, sobretudo os comunistas, não questionaram sobre o que se passava e respaldaram Ortega somente porque ele, por pura retórica, afirma ser de esquerda, ainda que suas práticas políticas sejam de direita. Não é o ideal de esquerda que move Ortega, mas os interesses particulares de alguns partidos e governos.

CC: Como vivem os mais pobres na Nicarágua? Os ideais sandinistas estão distantes da vida real da população?
MB: Ortega é especialista em manipular. Suas campanhas em 2001 e 2006 foram centradas exclusivamente em pedir perdão e pregar o amor e a irmandade, completamente esvaziadas de conteúdo e de propostas verdadeiramente transformadoras da situação da Nicarágua. Quando chegou ao governo, voltou a adotar o discurso de esquerda porque necessitava do apoio material que lhe foi imediatamente outorgado pela revolução bolivariana de Hugo Chávez e se expressou em uma fatura petroleira altissimamente favorável. Lamentavelmente, esse apoio do governo da Venezuela não entrou nos cofres do Estado para ser supervisionado pelas instâncias encarregadas, como acontece nos países democráticos, mas foi entregue a uma rede de empresas. O discurso de Ortega não se traduz em políticas reais. Elas favorecem os interesses do capital e as operações das grandes transnacionais que compraram setores importantes da economia, como energia e comunicações.

CC: É possível restabelecer os rumos originais da revolução ou é necessário um novo ideal?
MB: O caminho da luta cívica, não violenta, foi escolhido pela população nicaraguense. Nos anos 60 e 70, a única maneira que os povos encontraram para derrubar as ditaduras na América Latina foi a luta armada. A vitória da Frente Sandinista e do povo da pequenina Nicarágua, com índices econômicos sumamente baixos, foi a última revolução armada do continente. Como historiadora, enfatizo que o triunfo nunca teria sido possível exclusivamente pela via das armas. Houve o peso fundamental da participação ativa do povo sob distintas modalidades, que incluíram a organização sindical, o trabalho de sacerdotes cristãos inspirados na Teologia da Libertação e a dinâmica sem precedentes dos estudantes. Esse é o fator que me faz ter absoluta convicção de que vamos acabar com a ditadura de Ortega, principalmente se lograrmos reeditar as páginas do protagonismo ativo dos distintos setores populares, sobretudo dos camponeses particularmente reprimidos pelo governo. •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Ortega é manipulador”’

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