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O Brasil não precisa de autorização

O País tem seus próprios interesses, mas será importante não esquecer o direito internacional

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante cerimônia com o homólogo Xi Jinping. Foto: Ken Ishii / POOL / AFP
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Na mesma semana em que visitava a China, Lula foi convidado pelo Japão para a reunião do G-7. Nessa semana assinalavam-se os cem dias de governo e a mídia brasileira aproveitava para expressar em casa o desapontamento com os resultados da governança. Exatamente no momento em que todo o mundo mostrava interesse em atrair a atenção do presidente da República, o jornalismo brasileiro parecia apostado em lembrar Lula que ele não tinha ainda resolvido todos os problemas do País. Sinceramente, ao menos para quem observa de fora, o problema não me parece ser do governo, mas da mídia.

Na verdade, quem tem o mínimo de capacidade de análise facilmente reconhecerá que um dos mais sérios problemas do Brasil nestes últimos quatro anos consistiu no isolamento político internacional. Esse isolamento nunca foi apenas um problema externo, mas um problema para a política nacional – danos para a política comercial, danos para o investimento externo, danos para a política ambiental, danos para os cidadãos. Cem dias depois, esse problema desapareceu, o Brasil retornou ao palco da política internacional e voltou a ser um país respeitado e previsível. Isso não quer dizer, obviamente, que todos concordem com a sua política externa (voltarei a esse ponto), mas todos têm consciência de que a vida política internacional fica mais rica, mais representativa e mais diversa quando veem o Brasil voltar a ocupar o seu espaço na cena global.

De forma breve, podemos dizer que um dos mais sérios problemas do Brasil reside no fato de ser uma potência política sem consciência de si própria. Sempre que falo nesse assunto costumo recordar o interessante episódio contado por ­Henry Kissinger num livro que publicou no início deste século. Diz ele que, nos anos 70, durante a Presidência de ­Gerald Ford, a administração norte-americana decidiu conceder ao Brasil o estatuto de conselheiro especial. Na Comissão de Negócios Estrangeiros do Congresso foi, então, questionado se, ao conceder essa distinção ao Brasil, os Estados Unidos não estavam a elevar o País ao estatuto de potência mundial. Henry Kissinger respondeu assim: “O Brasil tem uma população de 100 milhões de habitantes, vastos recursos econômicos e um ritmo de desenvolvimento muito elevado. Está a tornar-se uma potência mundial e não precisa da nossa aprovação para isso”. Isso foi em 1976 e o Brasil tinha 100 milhões de habitantes. Hoje tem 220 milhões e estamos em 2023. Talvez seja altura de a mídia nativa tomar consciência do que representa para o Brasil voltar a ter uma política externa. Mas, enfim…

Todavia, o regresso ao palco internacional é também um regresso à controvérsia política, estando, como está, a política internacional dominada pela guerra da Ucrânia. A esse propósito parece evidente que a Europa não tem a mesma posição que o Brasil e quem parar uns minutos para pensar perceberá que essa diferença corresponde a uma assimetria de interesses perfeitamente compreensível. Vejo na cena internacional duas posições: uma pede a condenação da Rússia sem falar na paz, a outra fala da paz sem condenar a Rússia. O Brasil acha que se deve colocar entre as duas. Espero que o faça lembrando também a Carta das Nações Unidas e a proibição do uso da força fora da legítima defesa ou fora da decisão do Conselho de Segurança. Compreendo que o Brasil queira afastar-se de um discurso de escalada militar e de corrida aos armamentos. Mas será importante não esquecer o direito internacional, nem esquecer que estamos perante um caso de invasão militar.

Seja como for, o Brasil tem agora uma voz. E uma voz que se faz ouvir. Julgo que isso faz toda a diferença e que deve ser levado a sério pela Europa. O Brasil tem seus próprios interesses e sua política externa não é discípula nem seguidora cega da política externa europeia. Ainda que alguns jornalistas insistam em tratar o grupo de países ocidentais (sumariamente Europa, Estados Unidos e Japão) como comunidade internacional, esse não é o mundo em que vivemos. A Europa precisa comportar-se com realismo político – os problemas europeus não são, necessariamente, os problemas do mundo. Para atrair o Brasil para a sua esfera de atuação é melhor procurar as vias de diálogo e de compromisso. E, principalmente, não achar que qualquer divergência de pontos de vista deva ser tratada como uma agressão ou um ato hostil. A política externa é um domínio sensível e o Brasil, para mais uma vez citar Henry Kissinger, não precisa de aprovação de ninguém para se afirmar como uma potência política mundial de 220 milhões de habitantes. •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Brasil não precisa de autorização’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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