Cultura
As faces distópicas de uma black friday
O estreante Nana Kwame Adjei-Brenyah lança mão da ironia para escancarar o racismo e o consumismo
O mundo no qual se passam os 12 contos de Friday Black, do norte-americano Nana Kwame Adjei-Brenyah, se parece com o nosso, mas não é exatamente o nosso. Não se trata tampouco de uma tradicional distopia futurista. A coletânea é um conjunto de estranhamentos que escancaram as feições do racismo e do consumismo contemporâneos.
Adjei-Brenyah demonstra, em sua estreia, um grande domínio das ferramentas literárias, valendo-se de ironia, cinismo e humor para abordar os temas duros. Há, em sua narrativa, algo de um horror social típico do cineasta Jordan Peele. O diálogo com filmes como Corra! e Nós é indireto, mas evidencia as novas formas artísticas que procuram dar conta dos debates sociais contemporâneos.
O conto Friday Black – veja bem, não é Black Friday – tem como narrador e protagonista um rapaz negro que trabalha numa loja. E ele relata um desses dias de promoção alucinante, no qual os consumidores se tornaram, literalmente, zumbis. O texto é engraçado e, ao mesmo tempo, assustador.
FRIDAY BLACK. Nana Kwame Adjei-Brenyah. Tradução: Rogério W. Galindo. Fósforo (224 págs. 69,90 reais)
“Nossa loja tem três corpos na seção de cadáveres”, descreve ele. “O primeiro chegou faz uma hora. Uma mulher escalou a parede de calça jeans, procurando uma segunda peça do tamanho dela. Ela gritava e sacudia a divisória do cubículo de madeira, a ponto de a coisa toda quase cair em cima do Duo e de todo mundo na seção dele. O Duo tirou a mulher da parede com um cutucão de pegador.”
Esse mesmo tom aparece em outros textos. Mas Adjei-Brenyah explora diferentes formas de narrar. A primeira história do volume, Os Cinco de Finkelstein, relata um crime bárbaro. Um homem branco mata, a tiros, cinco crianças e adolescentes negros na porta de uma biblioteca, simplesmente por ter acreditado que iriam atacá-lo. A partir desse fato, o conto aproxima-se da ficção científica.
No futuro imaginado pelo autor, há gradações de negritude que podem ser controladas. Por exemplo, ao usar determinada roupa ou ter um certo jeito de falar, a pessoa pode, digamos, “baixar” do nível 8 para o nível 3. E é nesse ambiente que os assassinatos começam a ser vingados, já que o criminoso foi inocentado no tribunal.
Adjei-Brenyah é sagaz e possui uma percepção aguda do mundo contemporâneo. Ele, em vários momentos, nos faz rir. Mas nosso sorriso se torna amarelo tão logo nos lembramos de que todos fazemos parte dessa estrutura de dominação e opressão – embora, obviamente, nem todos estejamos do mesmo lado. •
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As faces distópicas de uma black friday’
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