Economia
As cartas de Haddad
Criticado a torto e a direito, o arcabouço fiscal tem mais virtudes do que parece


Durante a reunião ministerial realizada na véspera do embarque à China, o presidente Lula foi enfático nos elogios ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tanto pela elaboração do novo arcabouço fiscal quanto pela condução da economia. Haddad virou saco de pancadas, a torto e a direito, mas o arcabouço fiscal condensa soluções realistas e seguras para o equilíbrio das contas públicas, dá um fim às amarras irracionais e sistematicamente descumpridas do falido teto de gastos, disse o presidente, além de garantir a volta do pobre ao Orçamento e possibilitar a aplicação de recursos no desenvolvimento econômico do País.
A boa impressão de Lula sobre o andamento da área econômica funda-se em dados do governo. O conjunto de regras anunciado prevê que os gastos vão crescer menos do que as receitas, o suficiente para estabilizar a dívida à medida que a arrecadação aumente, seja por meio do crescimento econômico, seja da revisão de benefícios fiscais ou de uma maior tributação. O governo atua nessas três frentes, mas o crescimento contratado, com recursos assegurados, é o ponto de maior destaque. A primeira medida do governo Lula foi estabelecer uma base elevada de despesas. O programa Bolsa Família deu um salto em relação aos 36 bilhões de reais desembolsados no auge do programa para 176 bilhões anuais no atual governo, para desembolso em todos os anos do mandato, caso o Congresso aprove. O investimento em infraestrutura, de 20 bilhões de reais somados nos quatro anos sob Jair Bolsonaro, subirá para 23 bilhões de reais apenas em 2023, segundo o Ministério da Infraestrutura. O gasto primário vai passar de 15% do PIB no primeiro governo Lula para 19%. Os desdobramentos desse forte empurrão na economia, em estado de letargia devido à política econômica dos seis anos anteriores, serão visíveis na alta do investimento público e privado, do emprego, da renda e da receita tributária. Assim estimam os formuladores da política econômica.
O Banco Central de Campos Neto é a quinta coluna – Imagem: Arquivo/TCU
A Fazenda, até agora, atendeu a todas as necessidades de recursos apontadas pelos ministérios, deixados na penúria pelo governo anterior, e não consegue gastar mais. O aumento do salário mínimo, apesar de discreto, é o maior desde 2012. O gasto definido inclui ainda tudo o que se pretendia dispender nos programas Farmácia Popular, Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, isenção do Imposto de Renda para quem ganha até dois salários mínimos e reajuste do funcionalismo.
Se, nos governos anteriores do PT, um dos problemas apontados para dinamizar o investimento público era a ausência de projetos, hoje a dificuldade é a execução. A soma do tempo gasto para licitar e empenhar os recursos indica não ser possível aumentar o gasto neste ano e que é grande a probabilidade de se chegar em dezembro com uma considerável conta de restos a pagar, isto é, de desembolsos impossíveis de se fazer pelas razões apontadas acima. Uma das causas da dificuldade do Poder Público de executar um maior volume de recursos para resolver as necessidades prementes do País é a inexistência de grandes empreiteiras, dizimadas pela Operação Lava Jato, sob as ordens do ex-juiz Sergio Moro, que não se contentava em seguir o ritual jurídico mundial, de punir os executivos envolvidos em falcatruas, e se dedicava a inviabilizar as empresas de um setor da economia brasileira mundialmente competitivo, inclusive diante das gigantes estadunidenses. Exposta a sua parcialidade pelo Supremo Tribunal Federal, o agora senador Moro terá de responder à acusação de tentativa de suborno apresentada à Justiça pelo ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran, em denúncia aceita pelo ministro Ricardo Lewandowski, do STF.
A injeção de recursos neste ano, aposta o governo, produzirá efeitos em breve
Boa parte do próprio PT parece, contudo, não ver no plano de Haddad as virtudes identificadas por Lula. Além das críticas frequentes da presidente do partido, Gleisi Hoffmann, de que o arcabouço é um entrave ao aumento de gastos, o partido, receoso quanto a supostos efeitos eleitorais negativos das novas regras, convocou o ministro para explicar o plano. Parece pouco plausível, entretanto, que um governo que turbinou gastos no início do mandato, nas dimensões apontadas acima, pretenda agora dar um cavalo de pau e adotar um arcabouço fiscal com potencial recessivo.
A direita, o novo arcabouço fiscal foi aceito, mostra a flexão para baixo da curva dos juros de longo prazo pouco depois do anúncio do programa, mas a aprovação não se dá no grau apontado por vários apoiadores do governo, convencidos de que, se o mercado financeiro gostou, é porque é ruim para o crescimento e para a população pobre. O que o mercado acolheu foi só uma das características do arcabouço, a de assegurar uma previsibilidade que o teto de gastos não permitia, mas ele trabalha hoje para apertar os parâmetros das novas regras fiscais, quer que eles sejam mais duros. Há quem identifique, inclusive, movimentos para torpedear a votação do novo arcabouço de modo indireto, a partir de iniciativas em relação à reforma tributária.
Os recursos do Bolsa Família são muito superiores àqueles do primeiro mandato de Lula. Essa é uma das apostas para dinamizar o consumo e o crescimento – Imagem: Roberta Aline/MDS
A posição do sistema financeiro não é, portanto, de apoio integral ao arcabouço, como alguns imaginam, mas parcial e está bem expressa nesta formulação do relatório do Fundo Verde, instituição de prestígio no mercado, de que “o plano fiscal consegue ser pior que o necessário e melhor que o temido”. Sempre lembrado pela sua condição de pai assumido do teto de gastos, que será substituído, o economista Marcos Mendes publicou artigos críticos ao novo conjunto de regras fiscais. Além do debate técnico, há outras questões envolvidas, aponta o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo e integrante da Comissão de Estudos Estratégicos ligada ao BNDES. “Em um mundo ideal, não seria necessário criar amarras próprias para o gasto, mas a realidade política que se impõe é que o teto de gastos da Emenda Constitucional 95 ruiu, e é preciso colocar alguma coisa no lugar. Nesse sentido, o arcabouço fiscal tenta responder às necessidades de substituir o finado teto e de atender à visão de um governo progressista, que entende o papel do Estado como articulador, não com uma função secundária, que é o que economistas como Marcos Mendes defendem”, sublinha Lacerda. “Ele adora ser chamado de pai do teto de gastos. E na condição de pai, chora a morte do filho. Na verdade, o teto foi uma regra muito mal construída, não passava de um congelamento de gastos sem discriminar investimento e gasto corrente por 20 anos, sem considerar ciclos econômicos, crescimento populacional, ou seja, algo absolutamente insustentável.
“A proposta atual não é o melhor dos mundos, mas é a possível diante das circunstâncias”, afirma o economista Antonio Corrêa de Lacerda
É um projeto que nasceu morto, acrescenta o professor, mas era defendido e elogiado pelo mainstream econômico. “Muitas das críticas ao novo arcabouço vêm desse ranço de um pessoal que estava amarrado ao modelo anterior.” A proposta atual não é o melhor dos mundos, mas é a possível diante das circunstâncias políticas e econômicas. “É uma forma de colocar alguma coisa na mesa para negociar. Acho que as tratativas não serão fáceis, tanto no próprio partido quanto no Congresso.”
Até o momento, o conjunto de regras fiscais proposto conta com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Está prevista intensa disputa nas discussões e na votação do projeto, que inclui, entre outros pontos, a taxação de apostas eletrônicas e de e-commerce que não cumpram as regras da Receita Federal e alterações na subvenção aos estados em relação à cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), medidas com potencial de aumentar em 150 bilhões de reais as receitas do governo, segundo Haddad. Este é o valor necessário para fechar a conta da Fazenda. Na terça-feira 11, o governo deu um passo nessa direção e anunciou o fim da isenção de impostos para as compras internacionais com valor abaixo de 50 dólares, ou 250 reais, para combater a sonegação em plataformas digitais de empresas como Shopee, Shein e AliExpress, que registraram movimento de queda nas vendas após a divulgação da medida. Fiscais da Receita Federal acreditam que essas empresas estariam fornecendo informações falsas para sonegar tributos.
Galípolo, secretário-executivo, busca o equilíbrio entre as regras e a democracia. Appy cuida da reforma tributária – Imagem: Washington Costa/MF
A julgar pelos editoriais dos jornais a respeito dos primeiros cem dias do governo Lula, o País estaria, entretanto, sem perspectivas, quase à beira do abismo. A situação atual faz lembrar o período do escândalo do Mensalão, quando a oposição e a mídia davam como certo que Lula chegaria em 2006 enfraquecido. Ocorreu, contudo, uma virada, depois que a política econômica começou a dar resultado, e o petista foi reeleito. Naquele momento, assim como agora, a mídia afirmava que não havia novidades no governo.
O arcabouço visa equilibrar as contas públicas, reduzir o déficit primário e aumentar o superávit. A proposta será debatida no Congresso e votada. Uma das principais metas é zerar o déficit primário em 2024. Estão previstos superávits nas contas públicas de 0,50% em 2025 e de 1% em 2026. O crescimento dos gastos será limitado a 70% da receita primária dos 12 meses anteriores. A regra pretende compatibilizar a parte mais avançada da Lei de Responsabilidade Fiscal com uma regra de gastos para assegurar um percurso da dívida no rumo correto. O novo arcabouço estabelece um limite de avanço dos dispêndios entre 0,6% e 2,5% ao ano. A existência de um piso e de um teto assegura, dizem os técnicos do governo, o caráter anticíclico do arcabouço, isto é, a capacidade de atenuar tanto movimentos de baixa da economia quanto fases de alta. A expectativa é de que a proposta contribua para a criação de um ambiente econômico mais favorável ao investimento privado e ajude a impulsionar o crescimento econômico, a geração de empregos e o aumento da receita tributária.
Na síntese do economista André Roncaglia, professor da Unifesp, o novo arcabouço fiscal é um sistema de regulagem do equilíbrio orçamentário, formulado com vista ao longo prazo. Ele considera que o desenho do pacote permite a calibragem da regra de forma a refletir os anseios das urnas, à direita e à esquerda e, devido a essa peculiaridade, constitui um avanço institucional. Para Felipe Salto, da Warren Rena Investimentos, o crescimento real médio das despesas teria sido 40% menor nos últimos dez anos se o novo arcabouço fiscal estivesse em vigor nesse período. A economia seria de 64,6 bilhões por ano, calcula o Ministério da Fazenda. Salto defende que o arcabouço é positivo, mesmo sem receitas adicionais.
A situação dos investimentos no Ministério dos Transportes dá ideia do poder dinamizador da política econômica atual, em curto espaço de tempo. O governo destravou investimentos e recuperou 2.158 quilômetros em rodovias federais nos cem primeiros dias de gestão, com o empenho de 3,3 bilhões de reais entre janeiro e a primeira semana deste mês. Nos 12 meses de 2022, foram executados apenas 1,25 bilhão e entregues somente 494 quilômetros entre duplicações, adequações, pavimentações e revitalizações. Com o orçamento recomposto, foram revitalizados 495 contratos suspensos na gestão anterior por falta de dinheiro. Desse total, cem eram obras paralisadas ou em ritmo lento.
As notícias positivas sobre o comportamento dos juros de longo prazo, da inflação, do ingresso de dólares e da Bolsa de Valores aumentam o contraste entre a realidade econômica e a posição irredutível do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, de manter as taxas de juro atuais, de 13,75% ao ano, sem fundamento técnico, segundo vários economistas renomados. Apontado em alguns círculos de investidores como “mimado” e “irresponsável”, Campos Neto extrapola cada vez mais as suas funções e, após ter dado um pito no BNDES na última ata do Comitê de Política Monetária, agora busca contatos no Ministério da Fazenda, de acordo com os jornais, para apoiar o seu combate ao que seriam excessos do banco público na concessão de crédito subsidiado a investimentos. “Estão brincando com o País, com o povo pobre e com os empresários”, disparou Lula, em relação aos juros altos.
Obras de infraestrutura, aposta na transição energética e retomada de programas como o Farmácia Popular estão entre as prioridades – Imagem: Ministério dos Transportes, Cristine Rochol/SES/Prefeitura de Porto Alegre e Redes sociais
Um exemplo recente mostra que o governo adotou um novo padrão de decisões na área econômica, não linear e com enfoque múltiplo, de modo a levar em conta tanto as agudas diferenças socioeconômicas quanto as necessidades de transição sustentável e de arrecadação do governo. A gasolina e o etanol foram reonerados a partir de março, mas a alíquota da gasolina subiu mais que aquela do etanol, alinhada com a orientação de taxar mais os combustíveis fósseis, não renováveis. A reoneração teve também um caráter social, para punir menos o consumidor, e econômico, para preservar a arrecadação. Bolsonaro isentou de PIS, Cofins e CID a gasolina e a tributação voltou com Lula, mas não veio cheia. Os tributos somavam 69 centavos, foram zerados e agora passaram para 47 centavos. O imposto sobre o litro de álcool era de 24 centavos por litro, zerou e agora subiu para apenas 2 centavos. Bom para o consumidor, a transição energética e o usineiro. O óleo diesel, elemento central de custo para o conjunto da economia, inclusive os preços dos alimentos, não voltou a ser taxado.
A Medida Provisória da reoneração parcial dos combustíveis, determinou ainda a cobrança de um imposto de 9,2% sobre as exportações de óleo bruto de março a junho. O etanol só ficou mais barato porque o governo decidiu cobrar esse imposto, assim como se fez no resto do mundo, na esteira dos lucros excepcionais das petroleiras. O conjunto das medidas significa uma arrecadação de 28,8 bilhões de reais, valor suficiente para construir 30 hospitais com 500 leitos cada um, quatro linhas de metrô e colocar 18 milhões de crianças na escola, segundo cálculos do governo
“Estão brincando com o País, com o povo pobre e com os empresários”, disparou Lula em relação aos juros altos
Algumas consultorias acreditam que não será difícil obter um aumento de receita tributária de 150 bilhões de reais, mas o governo quer mais recursos para financiar planos de grande envergadura. Lula ressaltou que o programa de investimentos estratégicos em infraestrutura abrangerá transportes, infraestrutura social, inclusão digital, conectividade, infraestrutura urbana, água etc. “A transição energética será acelerada. Vamos lançar editais para contratação de energia solar e eólica, que, somados, representarão uma capacidade de geração equivalente à de nossas maiores usinas hidrelétricas. Os leilões para novas linhas de transmissão vão tornar ainda mais rápida e atrativa a implantação desses parques de energia limpa. E não perderemos a oportunidade de nos tornarmos uma potência global do hidrogênio verde”, declarou o presidente. A existência de grandes projetos em gestação explica metas como a tributação de cerca de 500 empresas com superlucros inflados por subsídios ao custeio. São companhias que vão muito bem e usam subsídios não para investir, mas para reduzir preços dos produtos e serviços e multiplicar ainda mais os lucros, em flagrante concorrência desleal com outras empresas que não contam com a benesse.
Neste conjunto de iniciativas reside a esperança de Lula. O tempo é curto e as demandas se acumulam na porta do Palácio do Planalto. O desafio do governo está resumido em uma frase de Gabriel Galípolo, secretário-executivo do Ministério da Fazenda: “A democracia deve caber na regra econômica”. E vice-versa. •
Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As cartas de Haddad’
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