Cultura
O combate em verso
Roberto Piva, cuja obra é pela primeira vez reunida em um único volume, soube vaticinar o futuro e enfrentar a hipocrisia


É difícil falar de alguém cuja lenda pairou sobre São Paulo por mais de 50 anos. Quando conheci Roberto Piva, no início dos anos 1960, sua reputação já estava estabelecida. Conheci-o num momento em que éramos os dois jovens, e só o reencontrei em outro momento, quando éramos os dois velhos.
Houve um longo período de ausências a intermediar esses dois momentos em que só ouvia falar dele por meio de outros. Outros que o conheciam, o viam e privavam da sua proximidade. No entanto, Piva, mesmo ausente, permaneceu fundamental na minha vida. Aos poucos anos de convivência com ele e com aquele grupo que se reunia ao acaso no Centro da cidade, pelos bares, ruas e escadarias da Biblioteca Mário de Andrade, devo meus anos de formação.
Quando saiu Paranoia, o livro de Piva que se abateu sobre uma pequena parte da cidade com uma força descomunal, não sei quantos de nós nos demos conta de que ele falava de uma cidade muito diferente da São Paulo que tínhamos diante dos olhos. Aquele caos, aquela violência, as imagens terríveis, os vícios estarrecedores, existiam mesmo?
Certamente, não naquela São Paulo de 1963, modorrenta, provinciana, quase caipira. A cidade era então formada por bairros que pouco se comunicavam. Cada um tinha sua mesquinha vida própria, com seu cinema, sua igreja, seu modesto restaurante, seu grupo escolar e, não com muita frequência, sua modesta biblioteca pública com seus livros convencionais.
A cidade entrevista em Paranoia era uma cidade real só para o Piva, na medida em que ele, como todo grande poeta, vaticinava o futuro. Só fomos conhecer a cidade por ele antecipada em meados dos anos 1980. E ela até hoje nos assombra. Todos os que louvam a imaginação delirante do poeta talvez não saibam que não havia imaginação alguma naquilo, apenas a visão do que estava por vir.
A São Paulo violenta e estarrecedora antevista por Piva em Paranoia, em 1963, é a mesma a nos assombrar hoje
Cada vez que olho para esta cidade, noto que ela se aproxima mais e mais daquela imaginada por Piva em 1963. Eu e todos do grupo sabíamos que ele era, talvez, o único verdadeiro poeta entre nós. Ou, pelo menos, a espécie de poeta que todos almejavam ser, mas sabiam, no fundo, que jamais seriam.
Todos amávamos Antonin Artaud, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, mas era ele o único a viver como eles. Todos sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, embarcaríamos em alguma profissão, nos casaríamos ou nos dedicaríamos à vida acadêmica. Nunca seríamos como o Piva. Exatamente por isso o amávamos.
Piva sempre representou o grupo na sua forma de agir. Lia tudo desenfreadamente, via todos os filmes, fruía o que o Centro da cidade da época punha à disposição – não era pouca coisa.
O Centro também não deixava de ser um bairro como os outros. Só que, ao invés de um cinema, tinha mais de 20; ao invés de dois bares, tinha cem; ao invés de uma miserável biblioteca, tinha a Mário de Andrade. E o Piva sempre morou nesse bairro, o que lhe permitia enxergar um pouco mais do que ia no mundo. Piva era o Centro. Viveu, perambulou e morreu ali.
Piva era uma pessoa em guerra, preparado dia e noite para o combate. Combatia contra tudo. Combate que já haviam travado seus poetas favoritos em todos os lugares do mundo contra as várias sociedades estabelecidas.
Seu arsenal de guerra, suas armas para ofender a “burguesia”, era cuidadosamente preparado. Um exemplo disso era sua escancarada homossexualidade, destinada, sobretudo, a arrepiar os cabelos nas cabeças das famílias burguesas. Piva pouco falava disso no grupo, mesmo porque a presença de homossexuais era comum ali.
Alcir Pécora, na brilhante apresentação de Morda Meu Coração na Esquina, que reúne, pela primeira vez, em um só volume, a obra de Piva, intitula assim seu ensaio: A Epopeia Bélico-Amorosa de Roberto Piva. Não poderia haver título mais certeiro. E o texto traz uma epígrafe do próprio Piva: Chovia na Merda do Teu Coração. O que havia a dizer sobre o Piva aí está dito.
Por vício profissional, estou acostumado a cortes secos. Uso esse expediente para me transportar para uma fria manhã, quase madrugada, de 2010. Estava filmando um longa-metragem e o trabalho começava cedo, mas não poderia deixar de passar no velório do Cemitério do Araçá, onde o corpo de Piva estaria sendo velado.
Numa das salas ao fundo de um corredor, uma plaqueta anunciava: “Roberto Piva”. Essa placa solitária me atingiu fortemente. Ninguém chamava o Piva de “Roberto”. Nem quem nunca o tinha visto. Era Piva para todos, exceto na capa de alguns livros. Uma vez, ele mesmo me disse que a única pessoa viva a chamá-lo de Roberto era um dentista que fora dentista de sua mãe.
Entrei na saleta e não havia nada, exceto o caixão fechado. Ainda não eram 7 da manhã. Fiquei alguns minutos pensando no caixão lacrado. Dentro dele poderia estar um tirano refinado e culto de alguma república italiana da Idade Média, um nobre de Toledo que encomendava telas para El Greco ou um senador romano que sonhava com o mar.
Piva, no fundo, era um romântico que procurava um mundo onde as relações entre os homens fossem menos vulgares e sórdidas. Não era verdade que ali jazia Roberto Piva. Jazia apenas Roberto. Piva já devia estar em seu apartamento, no bairro de Santa Cecília, pensando no filme que iria ver à noite, no hoje Espaço Itaú de Cinema, na Rua Augusta.
Como escreveu Pécora, “para alguém tido e havido como provocador e transgressivo”, Piva manifestava, não obstante, inegável vocação para o “clássico”. Decididamente, naquele caixão não estava o Piva. Em Morda Meu Coração na Esquina, está. Todo ele. •
*Ugo Giorgetti é cineasta.
Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O combate em verso’
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