Cultura
Escrever e viver a coletividade
Uma casa aberta por Conceição Evaristo na Pequena África, no Rio, insere-se no processo de valorização do espólio intelectual de autoras negras


Livro sempre foi um objeto de desejo para a escritora mineira Conceição Evaristo. Ao longo da vida, ela foi adquirindo muitos, escrevendo outros e até mesmo virando tema de teses e pesquisas. O acesso ao tal objeto de desejo acabou por gerar outro tipo de inquietação: ver as obras na estante, presas em casa, enquanto poderiam fazer diferença na vida de tantas pessoas.
Mas Conceição é o tipo de gente que, quando fica inquieta, movimenta-se. Aos 76 anos, ela resolveu criar um espaço para “libertar” seus livros para o público e, num futuro próximo, hospedar pesquisadores e oferecer bolsas de criação.
“Senti necessidade de organizar meu acervo. Não estou dizendo que vou morrer amanhã, não, porque não sou de morrer, tá?”, diz, sorrindo, para logo em seguida ficar séria. “Quando Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez faleceram, foi difícil organizar os arquivos delas. Abrir minha biblioteca e meu espaço é uma motivação também porque quero curtir isso em vida. Receber escolas, pesquisadores… Nosso plano é audacioso.”
A audácia rendeu seu primeiro fruto: o térreo de um pequeno prédio ao lado do Largo São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde, no Rio, tem as portas abertas e um cartaz em cima: Casa Escrevivência Conceição Evaristo.
Escrevivência é o conceito que a estudiosa criou há mais de 25 anos para se referir a uma escrita criativa a partir da vivência de pessoas profundamente ligadas à coletividade. “Colocar o conceito no nome da casa marca a insistência na validade dele. Vamos atuar, ao lado das instituições oficiais, para ser um polo de pesquisa sobre escrevivência, sobretudo das histórias de mulheres negras”, detalha, no espaço onde tudo, da sala com estantes à pequena cozinha, parece estar ganhando forma.
Os livros estão sendo transferidos aos poucos das casas da escritora no Morro da Conceição, ali do lado, e no município fluminense de Maricá, onde passa alguns fins de semana. No início do mês, ela promoveu um bazar com livros e objetos para arrecadar algum dinheiro e iniciar os trabalhos. Neste primeiro momento, banca o aluguel e uma ajuda de custo para suas escudeiras Evellyn de Sá e Margot Abrahão, enquanto busca financiamento para expandir planos e, quem sabe, arrematar a casa de três andares à venda no beco João Inácio.
“Vamos atuar, ao lado das instituições oficiais, para ser um polo de pesquisa sobre escrevivência”
O projeto faz lembrar da Casa Sueli Carneiro e do espaço Feminismos Plurais, idealizado por Djamila Ribeiro – ambas em São Paulo. “É interessante que sejam todas iniciativas de mulheres negras. E sublinham a preocupação com o espólio intelectual de pessoas negras”, diz ela.
Conceição tem consciência de que há instituições que se propõem a guardar acervos de escritores, e não as refuta. “Acho importante marcar presença em lugares como a Casa de Rui Barbosa (que tem o Arquivo-Museu da Literatura Brasileira) e também o Acervo de Escritores Mineiros na UFMG. Material é o que não falta, penso em distribuir.”
O desafio agora é encaixar as demandas da nova casa na rotina já tão agitada. No momento, ela tem vivido muito na ponte aérea para acompanhar um grupo de graduandos e pós-graduandos na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência da USP. Além disso, está com três livros em andamento: um romance para a editora Pallas, uma obra baseada nos diários de sua mãe (Planeta) e a coletânea de contos O Silencioso Pranto dos Homens, segunda da trilogia que já tem Insubmissas Lágrimas das Mulheres (Malê) e terá ainda um volume focado nos sentimentos de crianças e jovens.
“Inspiração eu tenho, falta tempo”, diz, acrescentando ter ainda o plano de escrever sobre a experiência de se candidatar a uma vaga da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2018. “Me seduz a ideia de escrever sobre esse processo, que foi bonito, totalmente diferente do que a Academia estava acostumada”, conta ela, referindo-se às assinaturas, milhares, de abaixo-assinados e à campanha de apoiadores nas redes sociais. No fim, a vaga foi ocupada pelo cineasta Cacá Diegues.
Com uma obra e uma trajetória que chamam atenção para a representatividade, seja de raça, gênero ou idade (ela acabou o doutorado aos 65 anos), Conceição volta ao conceito de escrevivência para definir o que a move. “Na Cátedra da USP somos mulheres negras em maioria, e lá formamos um quilombo dentro de um mundo que não nos quer. A reitoria nos quer hoje, mas as instituições brasileiras sempre foram estruturadas através da expulsão do negro e do indígena”, observa.
A Casa Escrevivência surge nesse espírito de coletividade que, segundo ela, marca o povo negro. Não por acaso, nasce num pequeno beco onde já funcionam as casas Jovino e Rei de Ouro – Hilário Jovino foi um precursor do carnaval na região. Tudo isso ao lado do Largo da Prainha, área boêmia que tem, no seu centro, a escultura de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio.
Essa região, conhecida como Pequena África, conta ainda com a Pedra do Sal, o Museu-Memorial dos Pretos Novos e o Cais do Valongo – local por onde chegaram milhares de africanos escravizados, hoje Patrimônio Histórico da Unesco. Na semana passada foi, inclusive, restabelecido o comitê gestor do Cais do Valongo, instituído pelo Iphan e do qual já faz parte a instituição de Conceição.
É comum ver grupos fazendo circuitos guiados sobre a herança africana por ali. Agora, os felizardos podem ter a sorte de, no meio do percurso, trocar dois dedos de prosa com Conceição Evaristo. •
Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escrever e viver a coletividade’
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