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Michelangelo e os puritanos

Nestes tempos de obscurantismo, uma lembrança do artista, símbolo da renovação humanista de seis séculos atrás

Michelangelo e os puritanos
Michelangelo e os puritanos
Tirem as crianças da sala – Imagem: Galeria da Academia/Florença
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Leio a nota publicada no site da BBC: “A diretora de uma escola na cidade de ­Tallahassee, nos Estados Unidos, foi forçada a pedir demissão após o ultimato do conselho pedagógico. Hope Carrasquilla foi responsabilizada pela exibição de imagens da estátua de Davi, de autoria de Michelangelo, em sala de aula. A nudez da obra foi classificada como ‘pornográfica’ por um dos pais. A imagem foi usada em um exercício na aula de Artes do 6º ano, que, nos EUA, ensina a crianças de 11 e 12 anos, da Tallahassee Classical School. Três pais reclamaram que a imagem foi exibida sem qualquer advertência de que nudez seria mostrada”.

Depois da polêmica, a diretora da Galleria dell’Accademia, em Florença, na Itália, Cecilie Hollberg, não hesitou em declarar que “falar do Renascimento sem mostrar Davi, ícone indiscutível da arte e da cultura daquele período histórico, não faria sentido”.

Os historiadores chamaram Renascimento àquela renovação humanista concentrada nos séculos XV e XVI, inspirada nos valores estéticos e culturais da antiguidade clássica. “O homem da Renascença”, ensina Robert Klein no prefácio do livro consagrado de Jacob Burckhardt, “almeja organizar a sua vida e a da sociedade e, para tanto, vai se empenhar com energia apaixonada e razão fria.”

Nadine Sautel, em sua biografia de Michelangelo Buonarroti, releva a importância dos Medici na constituição do Renascimento florentino.

Em dezembro de 1469, Lorenzo, dito o Magnífico, que mal completara 20 anos, foi eleito em meio ao entusiasmo. Começa então a época “lourenciana”, unanimemente saudada como a mais brilhante da Renascença florentina. Herança de três gerações de cultura e criação, ela é o húmus no qual se desenvolverão os gigantes: Botticelli, Leonardo da Vinci, o homem universal de quem ­Michelangelo se consumirá de inveja, e próprio ­Michelangelo, divino entre os divinos.

Apaixonado por arte e arquitetura, Lorenzo de Medici acolheu o jovem ­Michelangelo em seu palácio, cujas dependências foram transformadas em um verdadeiro museu. Lá estavam expostas obras dos maiores pintores e escultores de Florença, além de uma coleção de manuscritos antigos inestimáveis, notadamente aqueles de Platão, até então quase desconhecidos. Sua paixão pelo filósofo o conduziu a exercer um mecenato com os mais reputados humanistas. Fundou com eles a Academia Platônica, marco ­espiritual da Renascença europeia.

A diretora de uma escola nos EUA foi demitida por expor a “pornografia” de Davi. O tempora

O acolhimento de Michelangelo na Casa dos Medici merece a reprodução da narrativa de Nadine Sautel. A autora da biografia conta que, ao adentrar os jardins do palácio, Michelangelo apanhou a tesoura e ousou atacar um pequeno bloco de mármore jogado por ali. Talhou uma cabeça de fauno “à antiga”, tão benfeita que Medici, que era avaro em cumprimentos, murmurou: “Puro gênio”. O pequeno escultor não se contentara em imitar. Por fantasia, torcera a boca do sátiro, descobrindo sua língua e seus dentes. Lorenzo, o Magnífico, passou o braço por cima dos ombros do adolescente cujo coração batia desordenadamente e brincou delicadamente, como era seu hábito: “Você deveria saber que os velhos não têm todos os dentes”. Deu as costas imediatamente, lembrando-se de que o diretor do seu banco romano o aguardava para uma audiência… Então ­Michelangelo quebrou um dente do seu fauno e lhe cortou a gengiva. O príncipe, siderado por aquela personalidade fora do comum, só falava dele. Decidiu mantê-lo sob seu teto e mandou, portanto, dizer a ­Lodovico que desejava tratar o filho dele como um dos seus. Ofereceu-lhe um quarto no palácio e convidou-o a compartilhar as refeições com os próprios filhos e os dignitários de sua corte.

Depois da morte de Lorenzo, ­Michelangelo retornou à casa do pai e dividiu o quarto de dormir com o irmão. Retornou também ao ateliê de Ghirlandaio, onde exercitara as iluminações de sua arte.

Poucos sabem que Michelangelo conseguiu convencer o prior a lhe deixar a chave da câmara mortuária do Hospital Santo Spirito. De dia, ia ao ateliê, de noite, retomava o caminho de Santo ­Spirito, extraindo um coração ou um cérebro com tesouras de costureira, explorando os ossos com o escalpelo. Com a premonição de que dará vida à pedra como se reanimasse aqueles desconhecidos cuja carne retalhava, ele continua, tremendo de esgotamento, à beira da náusea.

Ao observar as esculturas de ­Michelangelo Buonarroti é impossível não se deslumbrar com a flacidez das carnes marmóreas. Foi essa percepção que fascinou meu filho Carlos Henrique, quando topamos com o Davi. Nadine Soutel nos ensina que Michelangelo não abandonara os conhecimentos adquiridos no Hospital Santo Spirito. “O corpo tem sua importância, ele é a ‘antecâmara’ platônica do espírito.” A julgar pelas analogias históricas arquitetadas pelos bons historiadores, o Renascimento seria o avesso das erupções anti-humanistas que frequentam as sociedades contemporâneas. Ao invés dos propósitos da organização racional e apaixonada de sua vida e da sociedade, os protagonistas da sociedade de massa entregam-se às forças irracionais e devastadoras da ignorância negacionista.

Nas recentes invasões do Capitólio e dos edifícios públicos em Brasília, os novos bárbaros da contemporaneidade botocuda esmeraram-se em destruir as obras de arte. Os espíritos antirrenascentistas do Terceiro Milênio enganam-se com ideias pobres e frases feitas. Entopem-se de alucinógenos que permitem fantasias banais, como aquelas que figuram a possibilidade de uma vida social ancorada em crenças preconceituosas e delírios cognitivos. Apesar de seus fracassos, os fracassômanos e catastrofistas não desistem. Isto significa que os antirrenascentistas, ao contrário de nossos predecessores humanistas, pretendem entregar-se ao mito e recusar as lições da história.  •

Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Michelangelo e os puritanos’

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