Cultura
O fantasma da criatividade
Artistas, escritores e especialistas em regulação começam a lutar contra as ameaças trazidas pelos softwares de Inteligência Artificial


Não há necessidade de mais histórias assustadoras sobre o futuro automatizado. Artistas, designers, fotógrafos, autores, atores e músicos veem pouca graça nas piadas sobre programas de Inteligência Artificial (IA) que um dia farão seu trabalho. Aquele amanhecer sombrio já chegou, dizem eles.
Uma parte importante da produção criativa e dos empregos que antes pareciam protegidos da ameaça da tecnologia já foi capturada na web para ser adaptada, mesclada e anonimizada por algoritmos para uso comercial. E enquanto o GPT-4, versão aprimorada do mecanismo gerador de texto por IA, era orgulhosamente apresentado duas semanas atrás, artistas, escritores e especialistas em regulação começaram a lutar seriamente.
“Bibliotecas de imagens estão sendo vasculhadas e enormes conjuntos de dados acumulados”, diz Isabelle Doran, da Associação de Fotógrafos. “Se quisermos garantir a valorização da criatividade, precisamos de novas formas de rastreamento de conteúdo e de leis mais inteligentes.”
Campanhas coletivas, ações judiciais, regras internacionais e truques de Tecnologia da Informação estão sendo mobilizados em defesa das indústrias criativas. Entre os primeiros a enfrentar uma ameaça genuína a seus meios de subsistência estão fotógrafos e designers.
O software generativo pode produzir imagens com um clique, enquanto sites como o popular NightCafe criam obras de arte “originais” derivadas de dados em resposta a comandos verbais simples. A primeira linha de defesa é um movimento crescente de artistas visuais e agências de imagens que agora estão “opting out” – optando por não permitir que seu trabalho seja cultivado por software de IA, um processo chamado “treinamento de dados”. Nos últimos dias, milhares de pessoas postaram “Fora IA” em suas redes sociais e galerias na web.
Uma aproximação gerada por software das letras de canções de Nick Cave deixou o cantor irado. Ele definiu a iniciativa como “uma zombaria grotesca do que é ser humano”. Outras inovações de IA, como a Jukebox, ameaçam músicos e compositores. E a tecnologia de clonagem de voz está deixando narradores e atores reais sem trabalho regular.
Em fevereiro, um veterano narrador de audiobook do Texas notou, em um contrato, que a Apple tinha o direito de “usar arquivos de audiobook para treinamento e modelos de aprendizado de máquina”. O sindicato SAG-Aftra assumiu o caso.
A agência envolvida, a Findaway Voices, propriedade do Spotify, concordou em suspender temporariamente essa atividade. Mas este ano a Apple lançou seus primeiros livros narrados por algoritmos, serviço que o Google oferece há dois anos.
A premiada autora britânica Susie Alegre, vítima recente de plágio da IA, indaga: “Nós realmente precisamos encontrar outras maneiras de fazer coisas que as pessoas gostam de fazer? Coisas que nos dão uma sensação de realização, como escrever um poema? Por que não substituir as coisas que não gostamos de fazer?” Ela observa que o pensamento autêntico já vem sendo desvalorizado e que, se o mundo depositar sua fé na IA, os ativos intelectuais serão minados.
Fotógrafos e designers têm sido os primeiros a vivenciar um risco real a seus meios de subsistência
As incursões da IA no mundo criativo rendem manchetes porque é divertido ler sobre uma música ou uma obra de arte premiada que foi inventada por computador. Relatos de inovação por software no campo de seguros são menos atraentes. Além disso, os esforços científicos para simular a imaginação sempre estiveram na vanguarda da busca por uma IA melhor, precisamente por ser algo muito desafiador. O software poderia realmente produzir pinturas que impressionam ou histórias que envolvem? Até agora, a resposta para ambos é, felizmente, não. É muito difícil falsificar o tom e o registro emocional apropriados.
No entanto, a perspectiva de carreiras criativas está em jogo. O ChatGPT é apenas um dos mais recentes produtos de IA, ao lado do Bard, do Google, e do Bing, da Microsoft, a abalar a legislação de direitos autorais e deixar em artistas e escritores uma sensação de “violação”.
Uma análise recente desse problema apontou que o trabalho de designers e ilustradores é o mais vulnerável. Programas de software criam imagens em segundos, todas selecionadas de um banco de dados de estilos e paletas de cores. Uma plataforma, a ArtStation, teria ficado tão sobrecarregada com os memes anti-IA que solicitou o rótulo de “arte de IA”.
O movimento de reação está se espalhando: dezenas de milhões de obras de arte e imagens foram excluídas nas últimas semanas. Mas seguir a trilha é complicado, pois as imagens são usadas pelos clientes em formas alteradas, e as cláusulas de opção contrária podem ser difíceis de encontrar. Muitos fotógrafos também estão relatando que seu “estilo” está sendo imitado para a produção de trabalhos mais baratos.
Para Susie Alegre, que descobriu no mês passado que parágrafos do premiado Freedom to Think (Liberdade para Pensar) estavam sendo oferecidos, sem créditos, pelo ChatGPT, existem perigos ocultos em, simplesmente, optar por não participar: “Isso significa que você está completamente excluído da história, e para uma mulher é problemático”. Sua obra já está sendo atribuída erroneamente a autores masculinos pela IA e sua ausência dos bancos de dados agravaria o erro.
Os fãs da IA acreditam que ela pode nos ajudar a entender melhor o futuro, superando nossas limitações intelectuais. Mas, para os artistas e escritores plagiados agora, a maior esperança é que isso tudo nos ensine, mais uma vez, que devemos duvidar e verificar tudo o que vemos e lemos. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O fantasma da criatividade’
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