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Macron impõe de forma autocrática a reforma da Previdência e os trabalhadores reagem nas ruas


A polícia de Paris proibiu reuniões na central Place de la Concorde, enquanto milhares de manifestantes continuam a protestar em toda a França contra a decisão de Emmanuel Macron de forçar a mudança da idade de aposentadoria sem votação parlamentar.
Os protestos em andamento ou planejados no sábado 18 ocuparam as ruas de cidades como Bordeaux, Nantes, Marselha, Brest e em outras partes de Paris, depois que os sindicatos pediram uma demonstração determinada de resistência antes do nono dia de ação nacional planejada para a quinta-feira 23.
Macron recorreu a poderes executivos discutíveis para forçar a aprovação de seu projeto na quinta-feira 16, depois de concluir que o governo não tinha certeza se ganharia uma votação na Assembleia Nacional sobre as mudanças, que incluem aumentar a idade mínima para aposentadoria de 62 para 64 anos. Embora legal pela Constituição da França, a medida enfureceu os partidos de oposição e levou a protestos de rua espontâneos, apresentando o maior desafio à autoridade do presidente desde os protestos dos coletes amarelos em 2018.
As greves nas refinarias aumentaram no sábado 18 e as paralisações em curso prosseguiram nas ferrovias, enquanto Philippe Martinez, líder da central sindical CGT, disse que Macron foi avisado de que a situação era explosiva. “Ninguém pode alegar que não dissemos nada, nós o avisamos.”
Os protestos continuam, apesar da dura repressão da polícia
Em Paris, espera-se que uma greve de lixeiros de 13 dias continue até ao menos a terça-feira 21, deixando mais de 10 mil toneladas de lixo empilhadas nas calçadas em dez dos 20 distritos da capital que dependem de coletores de lixo municipais, e não privados. Embora os protestos de rua tenham sido em grande parte pacíficos, a tropa de choque disparou gás lacrimogêneo e entrou em confronto com manifestantes na noite da sexta-feira 17 em Paris, onde 61 cidadãos foram presos depois que um incêndio foi ateado na Place de la Concorde, perto da Assembleia Nacional. Temendo mais problemas, a polícia de Paris proibiu, no sábado 18, novas reuniões na praça e nos arredores da Champs-Élysées, devido a “sérios riscos de distúrbios à ordem pública”.
Na cidade de Lyon, no sudeste do país, 36 manifestantes foram presos na noite de sexta-feira depois de tentarem invadir um prédio da prefeitura e incendiá-lo, disseram as autoridades locais. Pesquisas de opinião mostraram que em torno de dois terços dos franceses se opõem às mudanças nas pensões, uma promessa central da bem-sucedida campanha de reeleição de Macron em 2022. Ele disse que as mudanças são necessárias para evitar que o sistema falhe no futuro.
Embora a maioria dos países europeus tenha aumentado a idade de aposentadoria para bem mais de 64 anos, os críticos na França dizem que as mudanças são injustas para aqueles que começam a trabalhar cedo em empregos fisicamente difíceis e para os pais que interrompem suas carreiras. Os deputados da oposição apresentaram duas moções de censura ao governo que foram debatidas no Parlamento na tarde da segunda-feira 20, com o objetivo de angariar apoio suficiente para derrubar o gabinete e garantir a revogação da lei.
A primeira-ministra Élisabeth Borne e seu governo deverão sobreviver às votações, que, para serem bem-sucedidas, precisariam do apoio de ao menos metade dos deputados do principal partido de oposição, os Republicanos, de centro-direita.
O líder da legenda, Éric Ciotti, disse que não apresentará sua própria moção de censura nem votará para derrubar o governo – o que provavelmente forçaria uma eleição antecipada –, e acredita-se que apenas uma minoria de parlamentares republicanos provavelmente se rebelará. Mesmo que o governo de Borne sobreviva, Macron, entretanto, saiu do episódio politicamente prejudicado. A quatro anos do fim do segundo e último mandato, analistas dizem ser difícil ver como ele continuará com sua agenda reformista.
Nota de CartaCapital: A primeira-ministra sobreviveu por pouco às moções de censura discutidas no Parlamento. A censura apresentada na segunda-feira 20 pelo grupo independente Liot obteve 278 dos 287 votos necessários para defenestrar Borne, o que prenuncia um futuro incerto para Macron. Pedido semelhante da direita amealhou o apoio de apenas 94 parlamentares. “Só faltaram nove votos para derrubar este governo e sua reforma, um governo que já está morto para os franceses e sem nenhuma legitimidade”, declarou a deputada de esquerda Mathilde Panot. Aurélien Pradié, vice-presidente do Republicanos, de centro-direita, corrobora a análise. Em entrevista ao canal BFM, Pradié classificou a votação como um “choque elétrico considerável”, que não pode ser ignorado. “É evidente que o governo tem hoje um problema de legitimidade. O presidente da República deveria retirar a proposta e voltar a juntar todos à mesa, para fazermos uma nova reforma do sistema de pensões.”
Após o anúncio da derrota das moções, manifestantes voltaram a ocupar as ruas de Paris e de outras grandes cidades. Há bloqueios de estradas, aeroportos interditados e falta de combustível no sudeste do país. “As ruas vão fazer a diferença. Ao contrário do que pensa o poder, as ruas vão decidir no fim”, afirmou à AFP Odile Agrafeil, aposentada do setor bancário, durante um protesto em Estrasburgo. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Estado sou eu’
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