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Das masmorras para as ruas

Por trás da recente onda de ataques, um sistema carcerário que só fortalece as facções criminosas

Das masmorras para as ruas
Das masmorras para as ruas
Bomba relógio. As violações aos direitos dos presos facilitam o recrutamento das facções. Uma vez libertados, os soldados do crime não hesitam em demonstrar força e retaliar as opressões vivenciadas no cárcere – Imagem: José Adenir/TheNews/Estadão Conteúdo e GOE/PMRN
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Em uma semana, o Rio Grande Norte registrou quase 300 atentados. Por ordem do Sindicato do Crime, principal facção atuante no estado, diversos prédios públicos foram metralhados, dezenas de ônibus arderam em chamas e incontáveis lojas acabaram depredadas ou saqueadas. Mesmo com a presença de mil agentes da Força Nacional, da Polícia Rodoviária Federal e das forças de segurança de estados vizinhos, os ataques não cessaram. Na madrugada da terça-feira 21, criminosos efetuaram disparos de armas de fogo contra o Fórum de Justiça de Angicos, a 175 quilômetros da capital, e atearam fogo em um posto de combustíveis em Várzea, no Agreste. Ao todo foram 56 investidas naquela noite, horas após o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, anunciar um repasse de 100 milhões de reais para fortalecer as corporações policiais do estado.

“Assumimos o custo de três obras importantes: o Instituto Técnico-Científico de Perícia (Itep) para a Polícia Científica, o regimento de cavalaria da PM e o complexo da Polícia Civil”, enumerou o ministro. “Essas despesas serão assumidas pelo governo federal, o que vai permitir que a governadora use recursos que iriam para isso na aquisição de viaturas e armamentos.” Dino prometeu anunciar em breve mais recursos para o sistema prisional, visando a construção de uma nova unidade e a ampliação de vagas. A priorização dos investimentos nas forças de segurança, deixando para um segundo momento os aportes no sistema carcerário, despertou, porém, críticas de especialistas, a identificar na estrutura medieval dos presídios potiguares a causa central da crise.

Foram quase 300 atentados em uma semana

“É natural que, no calor do momento, as autoridades privilegiem o aparato repressivo para cessar os ataques e dar uma resposta à população”, pondera a socióloga Betina Warmling Barros, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Da mesma forma, não é novidade para ninguém que os presídios brasileiros são locais de graves violações aos direitos humanos, e as cadeias potiguares não fogem à regra. Esse é o ambiente perfeito para as facções criminosas se fortalecerem e recrutarem novos integrantes. Historicamente, o Estado gasta muito para prender os criminosos, mas não tem o mesmo cuidado para assegurar o adequado cumprimento da pena e a ressocialização dos detentos. É um erro, pois não existe prisão perpétua no Brasil, eles voltarão um dia.”

O crime organizado começou a se estruturar nas penitenciárias potiguares em meados dos anos 2000, após a prisão de lideranças da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). Diante de uma massa carcerária oprimida pela superlotação das unidades prisionais e pelas péssimas condições impostas aos detentos, o grupo não teve dificuldades de arregimentar soldados com a oferta do que o Estado se recusava a garantir: proteção contra os ataques de desafetos e amparo às famílias dos presos. Com o tempo, lideranças locais do PCC passaram a contestar decisões do comando paulista. A dissidência resultou na fundação, em março de 2013, do Sindicato do Crime, que viria se tornar a facção hegemônica no estado.

A violenta disputa por bocas de fumo, rotas do tráfico de drogas e domínio dos presídios culminou no Massacre de Alcaçuz, em 14 de janeiro de 2017, quando detentos do Pavilhão 5, controlado pelo PCC, invadiram o Pavilhão 4, do Sindicato do Crime, à época já aliado ao Comando Vermelho, do Rio de Janeiro. A sangrenta batalha resultou na morte de 27 presos. Alguns deles foram decapitados e tiveram os corpos incinerados. Até hoje não foi encontrado o cadáver de uma das vítimas, que a polícia dá como morta na carnificina. Desde então, os presos do Rio G­rande do Norte perderam acesso a televisores e visitas íntimas, o que só agravou a insatisfação com as péssimas condições do sistema carcerário, objeto de sucessivas denúncias feitas pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT).

Em nota publicada em 15 de março, após os primeiros ataques do Sindicato do Crime, o CEPCT elencou uma série de fatores determinantes para a crise: cadeias superlotadas, policiais penais insuficientes e mal remunerados, ­pessoas privadas de liberdade sem contato com o mundo exterior, condições de detenção insalubres e “práticas cotidianas e coletivas de maus-tratos, torturas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes” no cárcere. “Ao contrário do que grupos políticos ou setores do governo e do Judiciário apontam, não são as assim chamadas ‘regalias’ que constituem o problema. Compreendemos que a garantia de direitos humanos básicos é a única forma de contribuir para a solução dos recentes conflitos. Isso tem sido repetidas vezes constatado: naquelas unidades em que existem garantias, ainda que mínimas de sobrevivência, o cotidiano de tensão diminui.”

E os presídios? Ao priorizar a repressão, a governadora e o ministro enxugam gelo – Imagem: Elisa Elsie/GOVRN

O texto recebeu o apoio do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que também manifestou preocupação com a autorização dada pelo ministro Flávio Dino para o emprego da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) nas cadeias potiguares. Segundo a entidade, esses interventores, que chegaram a administrar prisões do Rio Grande do Norte logo após o Massacre de Alcaçuz, possuem um “padrão violador comum de atuação”, a incluir a suspensão de visitas familiares e de advogados e a imposição de castigos físicos, como obrigar presos a “ficar por horas sentados encaixados uns aos outros com as mãos entrelaçadas na cabeça, o que causa dores, falta de ar e sofrimentos diversos”.

Em novembro do ano passado, inspeções realizadas pelo MNPCT na Cadeia Pública de Ceará-Mirim e no Complexo Prisional de Alcaçuz, ambos na Grande Natal, identificaram condições absolutamente degradantes. Celas superlotadas e insalubres, surtos de dermatites e tuberculose, ausência de kits de higiene ­pessoal –

a responsabilidade de providenciá-los acabou transferida para as famílias dos detentos – e até mesmo privação alimentar. “As refeições já chegam impróprias para o consumo, com cheiro de azedo. Mesmo com uma máscara muito potente contra a Covid-19 foi possível sentir o cheiro azedo, nauseante daquela alimentação imprópria para consumo”, relatou a perita Bárbara Coloniese à CNN Brasil. “Se percebe, nitidamente, o emagrecimento da pessoa encarcerada naquele contexto.”

Na quinta 16, a governadora Fátima Bezerra, do PT, prometeu uma “investigação profunda” das denúncias de violações nos presídios. “O nosso governo jamais compactuará com medida alguma de arbítrio”, disse. A administração estadual refuta, porém, a tese de que os atentados começaram em retaliação às péssimas condições dos presídios, como o Sindicato do Crime tem feito circular por mensagens de WhatsApp. Atribui a ofensiva do bando justamente ao êxito estatal no combate ao crime, com maior número de prisões e apreensões de drogas. Já o governo federal identifica a transferência de lideranças da facção para penitenciárias da União, em janeiro, como o gatilho dos ataques.

“O nosso governo jamais compactuará com medida alguma de arbítrio”, diz Fátima Bezerra

“O descontrole do sistema carcerário é notório. Em 2021, foram registrados apenas dois suicídios nas penitenciárias potiguares, e nenhum homicídio. Mas o número de óbitos por causa desconhecida é espantoso: 49 de um total de 56 mortes, considerando todas as causas”, observa ­Betina Barros, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “E o Judiciário também tem responsabilidade, pois contribui para o encarceramento em massa e o elevado número de presos provisórios. Os juízes jogam um grande contingente de pessoas na cadeia, por vezes acusadas de tráfico de pequenas quantidades de droga, e o Executivo que se vire para acomodá-las.”

A advogada Maria Luiza Cabral concorda com a avaliação, e cita como exemplos as violações ocorridas no Complexo Prisional do Curado, em Recife, tema de seu projeto de mestrado na Universidade Católica de Pernambuco. Em decorrência da superlotação e insalubridade das celas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem feito, desde 2011, sucessivas recomendações ao Estado brasileiro para assegurar a integridade física dos detentos. Diante da manutenção do cenário, a corregedora nacional de Justiça, Maria ­Thereza de Assis Moura, precisou fazer drásticas determinações ao Tribunal de Justiça de Pernambuco, como a adoção de “medidas concretas e efetivas” para reduzir em 70% a população carcerária e “a revisão da situação processual de todas as pessoas atualmente custodiadas” no complexo.

“A situação é tão insustentável que os próprios presos controlam as chaves das celas”, comenta Cabral. “Mas isso não parece sensibilizar os juízes, em sua maioria homens brancos e de classe alta, que puderam dedicar anos de estudo para passar nos concursos da magistratura. Entre eles, prevalece a visão punitivista, de que o apenado precisa mesmo sofrer.” •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Das masmorras para as ruas’

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