Política
Das masmorras para as ruas
Por trás da recente onda de ataques, um sistema carcerário que só fortalece as facções criminosas


Em uma semana, o Rio Grande Norte registrou quase 300 atentados. Por ordem do Sindicato do Crime, principal facção atuante no estado, diversos prédios públicos foram metralhados, dezenas de ônibus arderam em chamas e incontáveis lojas acabaram depredadas ou saqueadas. Mesmo com a presença de mil agentes da Força Nacional, da Polícia Rodoviária Federal e das forças de segurança de estados vizinhos, os ataques não cessaram. Na madrugada da terça-feira 21, criminosos efetuaram disparos de armas de fogo contra o Fórum de Justiça de Angicos, a 175 quilômetros da capital, e atearam fogo em um posto de combustíveis em Várzea, no Agreste. Ao todo foram 56 investidas naquela noite, horas após o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, anunciar um repasse de 100 milhões de reais para fortalecer as corporações policiais do estado.
“Assumimos o custo de três obras importantes: o Instituto Técnico-Científico de Perícia (Itep) para a Polícia Científica, o regimento de cavalaria da PM e o complexo da Polícia Civil”, enumerou o ministro. “Essas despesas serão assumidas pelo governo federal, o que vai permitir que a governadora use recursos que iriam para isso na aquisição de viaturas e armamentos.” Dino prometeu anunciar em breve mais recursos para o sistema prisional, visando a construção de uma nova unidade e a ampliação de vagas. A priorização dos investimentos nas forças de segurança, deixando para um segundo momento os aportes no sistema carcerário, despertou, porém, críticas de especialistas, a identificar na estrutura medieval dos presídios potiguares a causa central da crise.
Foram quase 300 atentados em uma semana
“É natural que, no calor do momento, as autoridades privilegiem o aparato repressivo para cessar os ataques e dar uma resposta à população”, pondera a socióloga Betina Warmling Barros, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Da mesma forma, não é novidade para ninguém que os presídios brasileiros são locais de graves violações aos direitos humanos, e as cadeias potiguares não fogem à regra. Esse é o ambiente perfeito para as facções criminosas se fortalecerem e recrutarem novos integrantes. Historicamente, o Estado gasta muito para prender os criminosos, mas não tem o mesmo cuidado para assegurar o adequado cumprimento da pena e a ressocialização dos detentos. É um erro, pois não existe prisão perpétua no Brasil, eles voltarão um dia.”
O crime organizado começou a se estruturar nas penitenciárias potiguares em meados dos anos 2000, após a prisão de lideranças da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). Diante de uma massa carcerária oprimida pela superlotação das unidades prisionais e pelas péssimas condições impostas aos detentos, o grupo não teve dificuldades de arregimentar soldados com a oferta do que o Estado se recusava a garantir: proteção contra os ataques de desafetos e amparo às famílias dos presos. Com o tempo, lideranças locais do PCC passaram a contestar decisões do comando paulista. A dissidência resultou na fundação, em março de 2013, do Sindicato do Crime, que viria se tornar a facção hegemônica no estado.
A violenta disputa por bocas de fumo, rotas do tráfico de drogas e domínio dos presídios culminou no Massacre de Alcaçuz, em 14 de janeiro de 2017, quando detentos do Pavilhão 5, controlado pelo PCC, invadiram o Pavilhão 4, do Sindicato do Crime, à época já aliado ao Comando Vermelho, do Rio de Janeiro. A sangrenta batalha resultou na morte de 27 presos. Alguns deles foram decapitados e tiveram os corpos incinerados. Até hoje não foi encontrado o cadáver de uma das vítimas, que a polícia dá como morta na carnificina. Desde então, os presos do Rio Grande do Norte perderam acesso a televisores e visitas íntimas, o que só agravou a insatisfação com as péssimas condições do sistema carcerário, objeto de sucessivas denúncias feitas pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT).
Em nota publicada em 15 de março, após os primeiros ataques do Sindicato do Crime, o CEPCT elencou uma série de fatores determinantes para a crise: cadeias superlotadas, policiais penais insuficientes e mal remunerados, pessoas privadas de liberdade sem contato com o mundo exterior, condições de detenção insalubres e “práticas cotidianas e coletivas de maus-tratos, torturas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes” no cárcere. “Ao contrário do que grupos políticos ou setores do governo e do Judiciário apontam, não são as assim chamadas ‘regalias’ que constituem o problema. Compreendemos que a garantia de direitos humanos básicos é a única forma de contribuir para a solução dos recentes conflitos. Isso tem sido repetidas vezes constatado: naquelas unidades em que existem garantias, ainda que mínimas de sobrevivência, o cotidiano de tensão diminui.”
E os presídios? Ao priorizar a repressão, a governadora e o ministro enxugam gelo – Imagem: Elisa Elsie/GOVRN
O texto recebeu o apoio do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que também manifestou preocupação com a autorização dada pelo ministro Flávio Dino para o emprego da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) nas cadeias potiguares. Segundo a entidade, esses interventores, que chegaram a administrar prisões do Rio Grande do Norte logo após o Massacre de Alcaçuz, possuem um “padrão violador comum de atuação”, a incluir a suspensão de visitas familiares e de advogados e a imposição de castigos físicos, como obrigar presos a “ficar por horas sentados encaixados uns aos outros com as mãos entrelaçadas na cabeça, o que causa dores, falta de ar e sofrimentos diversos”.
Em novembro do ano passado, inspeções realizadas pelo MNPCT na Cadeia Pública de Ceará-Mirim e no Complexo Prisional de Alcaçuz, ambos na Grande Natal, identificaram condições absolutamente degradantes. Celas superlotadas e insalubres, surtos de dermatites e tuberculose, ausência de kits de higiene pessoal –
a responsabilidade de providenciá-los acabou transferida para as famílias dos detentos – e até mesmo privação alimentar. “As refeições já chegam impróprias para o consumo, com cheiro de azedo. Mesmo com uma máscara muito potente contra a Covid-19 foi possível sentir o cheiro azedo, nauseante daquela alimentação imprópria para consumo”, relatou a perita Bárbara Coloniese à CNN Brasil. “Se percebe, nitidamente, o emagrecimento da pessoa encarcerada naquele contexto.”
Na quinta 16, a governadora Fátima Bezerra, do PT, prometeu uma “investigação profunda” das denúncias de violações nos presídios. “O nosso governo jamais compactuará com medida alguma de arbítrio”, disse. A administração estadual refuta, porém, a tese de que os atentados começaram em retaliação às péssimas condições dos presídios, como o Sindicato do Crime tem feito circular por mensagens de WhatsApp. Atribui a ofensiva do bando justamente ao êxito estatal no combate ao crime, com maior número de prisões e apreensões de drogas. Já o governo federal identifica a transferência de lideranças da facção para penitenciárias da União, em janeiro, como o gatilho dos ataques.
“O nosso governo jamais compactuará com medida alguma de arbítrio”, diz Fátima Bezerra
“O descontrole do sistema carcerário é notório. Em 2021, foram registrados apenas dois suicídios nas penitenciárias potiguares, e nenhum homicídio. Mas o número de óbitos por causa desconhecida é espantoso: 49 de um total de 56 mortes, considerando todas as causas”, observa Betina Barros, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “E o Judiciário também tem responsabilidade, pois contribui para o encarceramento em massa e o elevado número de presos provisórios. Os juízes jogam um grande contingente de pessoas na cadeia, por vezes acusadas de tráfico de pequenas quantidades de droga, e o Executivo que se vire para acomodá-las.”
A advogada Maria Luiza Cabral concorda com a avaliação, e cita como exemplos as violações ocorridas no Complexo Prisional do Curado, em Recife, tema de seu projeto de mestrado na Universidade Católica de Pernambuco. Em decorrência da superlotação e insalubridade das celas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem feito, desde 2011, sucessivas recomendações ao Estado brasileiro para assegurar a integridade física dos detentos. Diante da manutenção do cenário, a corregedora nacional de Justiça, Maria Thereza de Assis Moura, precisou fazer drásticas determinações ao Tribunal de Justiça de Pernambuco, como a adoção de “medidas concretas e efetivas” para reduzir em 70% a população carcerária e “a revisão da situação processual de todas as pessoas atualmente custodiadas” no complexo.
“A situação é tão insustentável que os próprios presos controlam as chaves das celas”, comenta Cabral. “Mas isso não parece sensibilizar os juízes, em sua maioria homens brancos e de classe alta, que puderam dedicar anos de estudo para passar nos concursos da magistratura. Entre eles, prevalece a visão punitivista, de que o apenado precisa mesmo sofrer.” •
Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Das masmorras para as ruas’
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