Economia

assine e leia

Trepidações financeiras

Mais uma vez os defensores da eficiência dos mercados voltam com as calças na mão

Trepidações financeiras
Trepidações financeiras
Desastre. Ligada a ignição da ganância, os tripulantes não podem brecar o trem da alegria, até o descarrilamento – Imagem: iStockphoto
Apoie Siga-nos no

Nas últimas semanas o mundo das finanças viveu um período de turbulências. No chacoalhar dos balanços apodrecidos, os Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais se aprestaram a socorrer os claudicantes.

Leio no Financial Times: Jason ­Calacanis, um proeminente empresário e investidor da internet, apertou o botão em seu teclado e tuitou um aviso sobre o colapso do Silicon Valley Bank. “Você deve estar absolutamente aterrorizado agora – esta é a reação adequada a uma corrida bancária e contágio. Isso vai se transformar em Caos.”

A rápida queda do banco regional do setor de tecnologia derrubou os costumes no Vale do Silício. Investidores como ­Calacanis, que normalmente repreendem os reguladores por sufocar a inovação, voltaram-se para Washington em sua hora de necessidade. A maioria alertou para graves repercussões se os depositantes perderem o acesso permanente ao seu dinheiro.

As angústias de Calacanis trazem à memória os temores de um experiente administrador de fundos, em meio à tormenta do subprime, a Grande Recessão de 2008-2009: “Quando todos à sua volta estão fazendo negócios à velocidade do raio, é incrivelmente fácil ser carregado pela onda de otimismo e fazer coisas das quais você vai se arrepender. Nesses momentos, a atitude mais corajosa é não fazer nada”.

Piedosa intenção. Quem disputa o jogo da concorrência nos mercados financeiros está sempre “especulando”, obrigado a buscar, em condições de incerteza, o rendimento máximo, sob pena de ser desbancado pelo rival da esquina. Ligada a ignição da ganância infecciosa, os tripulantes não podem brecar o expresso da alegria, até o comboio descarrilar.

O entusiasmo quase generalizado com a liberalização e a desregulamentação dos mercados financeiros deu lugar à recriminação e à busca de culpados. Os analistas mais responsáveis e menos comprometidos com o mundo dos negócios procuraram ressaltar o papel desempenhado pelos bancos e empresas privadas, sempre envolvidos, dizem, em surtos “especulativos” com ativos reais e financeiros.

Quando ouço e leio proclamações condenatórias de gregos e troianos aos “especuladores” dos mercados não resisto a um sorriso irônico, daqueles que assomam nos cantos dos lábios.

Nos anos 1920, Keynes operou com perdas e ganhos nos mercados futuros e opções de commodities. Nesse período, estabeleceu uma distinção entre jogo e especulação. Jogo aplica-se a situações em que o risco não é calculável ou não distribuído normalmente, como o jogo da roleta. Especulação aplica-se a situações em que o risco é calculável e normalmente distribuído, como o seguro de vida. O critério de divisão está na quantidade de conhecimento possuída pelo agente em ambos os casos: “A posse de conhecimento superior [é] a distinção vital entre o especulador e o jogador”.

No correr dos anos, Maynard abandonou sua convicção acerca do conhecimento superior dos “especuladores” e consolidou suas convicções a respeito da natureza dos mercados de avaliação da riqueza financeira. “O investidor profissional é forçado a preocupar-se com a antecipação das variações iminentes, nas notícias ou no clima geral, do tipo das que, pela experiência, são as que exercem maior influência sobre a psicologia de massas do mercado. Esse é o resultado inevitável dos mercados de investimento organizados em torno da chamada ‘liquidez’.”

A sucessão de quebras e intervenções do Federal Reserve e do Tesouro nos Estados Unidos deixou de calças na mão os arrogantes e presunçosos que proclamavam e ainda proclamam a “eficiência dos mercados”.

Nas trepidações que antecederam à crise do subprime, os fanfarrões do mercado demoraram a descobrir que os bancos e seus parceiros, como os hedge funds e as seguradoras de crédito, estavam empenhados em jogar entulho na cordilheira de lixo tóxico. A cadeia de montanhas de detritos financeiros foi construída mediante a multiplicação e negociação de ativos lastreados em créditos hipotecários e a disseminação de derivativos que supostamente garantem os investidores contra o default, os indefectíveis CDS (Credit ­Default Swaps). Estimulados por comissões polpudas para suas instituições e incentivados pela expectativa de bônus estonteantes, os administradores da finança ajudaram a montar o cenário do desastre.

Já relatei, em outra ocasião, o debate promovido pela revista inglesa Prospect entre George Soros, Anatoly Kaletstky, do London Times, Martin Wolf, do FT, e John Gieve do Comitê de Estabilidade Financeira do Banco da Inglaterra, entre outros. Trechos do debate foram traduzidos de forma livre e se concentram na controvérsia sobre os instrumentos mais adequados para administrar um ciclo de crédito com inflação de ativos.

Alto dirigente do Banco da Inglaterra, Gieve não escapa pela tangente ao comentar a responsabilidade das autoridades no desenvolvimento das práticas e inovações que levaram ao desfecho indesejado. Diz ele: é impossível negar que a ausência de regulação no mercado de hipotecas contribuiu para a eclosão da crise. Na última euforia com a valorização de ativos, as operações estruturadas de crédito – vender títulos lastreados em empréstimos hipotecários e outros – fizeram a diferença. Os que inventavam e promoviam tais produtos não tinham a menor ideia a respeito do comportamento de seus preços em condições econômicas agudas.

O assim chamado megaespeculador George Soros desconfia das teorias que informam as decisões dos protagonistas dos mercados financeiros. Para ele, as autoridades e os demais participantes do jogo de avaliação da riqueza apoiam-se em uma falsa interpretação sobre o funcionamento dos mercados. Imaginam que, “eficientes”, esses mercados tendem ao equilíbrio e os desvios são aleatórios. Essa falsa concepção permitiu a elaboração dos produtos estruturados e produziu uma crise muito mais abrangente do que uma simples bolha imobiliária americana.

Bolhas de ativos são endêmicas. As autoridades reguladoras têm obrigação de lidar com elas enquanto é tempo. Não é o caso de se utilizar a política monetária, ou seja, de tentar furar a bolha com aumento do juro. Trata-se de operar através do canal do crédito. Soros, como ­Hyman Minsky, assegura que os mercados financeiros lidam com promessas e avaliações sobre o curso futuro dos ativos e dos títulos de dívida. Estão, portanto, sujeitos a gerar endogenamente euforia e pânico. O Banco Central deve estar sempre pronto para modificar as exigências de reservas e de capital conforme a toada do ciclo econômico. •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Trepidações financeiras’

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo