Entrevistas
Sal da terra
A reforma agrária é instrumento de combate à fome, diz César Aldrighi


À espera da publicação no Diário Oficial da União de sua nomeação definitiva, César Aldrighi, presidente interino do Incra, terá de reinventar o órgão em tempos de escassez. O orçamento atual do Incra equivale a 5% daquele de 2010, último ano do segundo mandato de Lula, e a defasagem de pessoal é de 42%. Resta ao agrônomo propor um “pacto” de fortalecimento do instituto. “Da agricultura familiar vem a comida na mesa dos brasileiros”, afirma ao repórter Maurício Thuswohl na entrevista a seguir.
CartaCapital: Quais os planos para a reestruturação do Incra?
César Aldrighi: O Programa Nacional de Reforma Agrária está parado. Em 2019, houve a suspensão de novas vistorias em imóveis e a paralisação dos processos em fase administrativa. O esvaziamento orçamentário deliberado fez com que, hoje, o Incra conte com pouco mais de 300 milhões de reais. Isso representa menos de 5% dos 4,8 bilhões de reais do orçamento em 2010, no governo Lula. A criação de novos assentamentos foi insignificante. As políticas para as comunidades quilombolas deixaram de ser executadas em sua plenitude. Tivemos uma redução no quadro de servidores na ordem de 42% e até o fim do ano poderemos perder mais servidores, em razão de aposentadoria.
Aldrighi aposta na assistência técnica aos assentados – Imagem: Redes sociais
CC: Qual a expectativa de recomposição do orçamento?
CA: Este quadro resumido mostra o tamanho do nosso desafio e não vamos conseguir superá-lo sem um pacto de fortalecimento do Incra. Precisamos de imediato trabalhar pela recomposição do orçamento, que permita a retomada das políticas de crédito, políticas quilombolas e também de aquisição de terras para reforma agrária. O orçamento do governo é um só, logo entendemos que o desmonte orçamentário imposto nos últimos quatro anos nas áreas da saúde, educação, políticas sociais e reforma agrária comprometeram a vida de quem mais precisa. No Incra, tivemos a paralisação quase completa do assentamento de famílias. Sem falar no encolhimento das políticas de crédito voltadas aos agricultores assentados. Sabemos da importância da retomada dessas políticas, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista econômico, porque é da agricultura familiar que vem a comida que está na mesa dos brasileiros. Por isso trabalhamos para ter de volta um orçamento que faça frente a estes desafios. Hoje discutimos com o conjunto do governo um índice de recomposição orçamentária que atenda às pautas mais urgentes das trabalhadoras e trabalhadores do campo, e que possibilite a retomada da política que constitui uma das principais missões do Incra, a reforma agrária. Nesse guarda-chuva temos assentamento de famílias, regularização de territórios quilombolas e crédito.
CC: Será possível deslanchar a política de reforma agrária ainda no primeiro semestre?
CA: Em paralelo à pauta orçamentária, que exige esforço e tempo para ser estabelecida, trabalhamos com outras estratégias para fazer frente às demandas de 2023, principalmente no que diz respeito ao assentamento de famílias. Dialogamos com outros órgãos governamentais para dar início ao aproveitamento de terras públicas para fins de reforma agrária e obtenção de imóveis rurais, principalmente aqueles relacionados à adjudicação pela Fazenda pública. Outra estratégia é acelerar a obtenção de terras enquadradas no artigo 243 da Constituição Federal, que prevê a expropriação de áreas utilizadas para culturas ilegais e exploração do trabalho análogo à escravidão.
CC: Como atuar com o número reduzido de servidores?
CA: O Incra sofreu uma significativa redução em sua força de trabalho. Entre 2015 e 2022, passamos de 4.631 servidores para 2.683. Em 2023, a previsão é de que teremos mais 1.107 aposentadorias. O instituto, que possui 29 superintendências regionais, ficará com pouco mais de 1,5 mil servidores. Para atender a todo o processo de regularização fundiária e também ao Programa Nacional de Reforma Agrária, vamos redobrar os nossos esforços, como tem sido característica dos servidores do Incra. Em paralelo, também dialogamos com o governo sobre a necessidade de recomposição gradual da nossa força de trabalho.
O presidente do Incra tem hoje 5% do orçamento e 42% menos funcionários do que em 2010
CC: Qual a participação dos assentamentos no novo Programa de Aquisição de Alimentos e demais medidas de combate à fome?
CA: O programa foi criado em 2003 com o objetivo de fomentar a agricultura familiar e combater a insegurança alimentar. Hoje, mais que nunca, essa conjugação é fundamental. Os assentamentos da reforma agrária não só têm a capacidade de contribuir com esse esforço do governo no combate à fome e na formação de estoques de alimentos, como também oferecer alimentação saudável à população. Nossa expectativa é de que, com a retomada gradual das políticas de créditos para a reforma agrária, avancemos na produção de alimentos.
CC: Qual o caminho para retomar os programas de assistência técnica aos assentados?
CA: Além da terra e dos créditos, a assistência técnica é um pilar fundamental para que tenhamos, a curto e médio prazo, a ampliação na oferta de produtos da agricultura familiar. Infelizmente, em seis anos essa foi uma política sistematicamente descontinuada e negligenciada, o que trouxe prejuízos às agricultoras e agricultores assentados. Temos conversado com os movimentos sociais, com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e com a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural sobre a retomada dos projetos de apoio técnico nos assentamentos. Nosso entendimento é de que a assistência técnica deve ser focada na necessidade produtiva de cada projeto. Ou seja, a oferta de assistência tem de estar mais conectada com a necessidade produtiva do assentamento e menos com propostas que estejam fora dessa cadeia.
CC: Como se dará a interlocução política do Incra com o MST e outros movimentos?
CA: O Incra lida com milhares de brasileiros em condição de vulnerabilidade social que vivem em acampamentos da reforma agrária, faz a gestão de mais de 900 mil famílias assentadas e é responsável pela governança territorial do País. Posso afirmar que ninguém faz isso sem dialogar com os movimentos sociais, organizações não governamentais, entidades representativas do meio rural e demais entes federativos. Esta é a nossa marca e assim prosseguiremos. •
Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sal da terra’
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