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Território hostil

O comando da Comissão de Meio Ambiente é objeto de disputa ferina entre ruralistas e o governo

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Pesadelo. Para o desespero dos ambientalistas, cogitou-se até o nome do ex-ministro Ricardo Salles, aquele que se empenhou em “passar a boiada” na legislação ambiental – Imagem: MMA e Fernando Frazão/ABR
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Os sinuosos caminhos da relação com o presidente da Câmara dos Deputados ameaçavam levar o governo a um revés com repercussão internacional. Ciente dos compromissos assumidos por Lula antes mesmo de tomar posse e da importância da retomada da agenda ambiental para o novo governo, Arthur Lira retardou ao máximo a escolha do nome para a presidência da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Nela serão debatidos, nos próximos anos, centenas de projetos com impacto socioambiental. A falta de um acordo para assegurar o comando do colegiado ao PT fez com que o PL de Jair Bolsonaro, dono da maior bancada da Casa, se articulasse para indicar um nome ligado ao agronegócio. Para desespero dos ambientalistas, cogitou-se até o ex-ministro e agora deputado Ricardo Salles para a presidência da comissão. Ao cabo, o posto ficou com o governista José ­Priante, do MDB. Mas a desconfiança persiste. Primo do senador Jader ­Barbalho, o novo presidente é visto por ativistas como pouco confiável. Chegou, inclusive, a se manifestar contra a destruição de maquinário do garimpo ilegal.

O colegiado terá papel essencial para o sucesso ou fracasso da agenda ambiental de Lula

O governo apostava suas fichas no ­deputado petista Nilto Tatto, integrante da Frente Parlamentar Ambientalista. O posto é visto como fundamental para reverter o desmonte das políticas ambientais promovido por Bolsonaro: “A comissão tem como missão zelar pela defesa do patrimônio ambiental do povo brasileiro, pela defesa dos recursos naturais que deem ­qualidade de vida à atual e às futuras gerações. Mas não vem ocorrendo isso, uma vez que nos últimos anos quem esteve à sua frente foram parlamentares ligados ao agronegócio, deputados que olham esse colegiado na perspectiva de flexibilizar a legislação”, diz Tatto, preterido na disputa.

Diversas organizações ambientalistas manifestaram sua contrariedade com a possibilidade de a presidência da Comissão de Meio Ambiente parar nas mãos de um ruralista ou de um “inimigo do meio ambiente”, como Salles. Em alusão à tristemente célebre frase do ex-ministro, o Instituto Socioambiental afirmou em nota que, se isso acontecer, “teremos boiadas sendo aprovadas semanalmente”. O ISA iniciou uma campanha nas redes sociais para exigir um ambientalista na presidência: “Ninguém aguenta mais ruralistas e bolsonaristas promovendo verdadeiros desmontes na proteção ambiental dos nossos biomas”.

Secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini afirma que o comando da comissão tem um valor estratégico: “O presidente é quem determina aquilo que vai ser votado ou não, além de ditar o ritmo da pauta. A depender dele, a gente pode, por exemplo, ver avançar um projeto de lei que libera a caça de animais ou um projeto de lei que aumenta a punição contra a caça irregular. Veremos um projeto que protege a Amazônia ou um projeto que libera ainda mais desmatamento. Daí, a importância de termos alguém comprometido com a causa ambiental”.

Respaldo. As promessas de Lula e Marina Silva na COP-27 da boa vontade do colegiado, entregue ao escorregadio deputado José Priante, do MDB – Imagem: Arquivo/MDB Nacional e Ricardo Stuckert

Rodrigo Agostinho, presidente do ­Ibama, ressalta que a postura do Congresso Nacional terá reflexos na maneira como o Brasil será visto no cenário das discussões ambientais globais: “O ponto central é que precisamos que a questão ambiental seja tratada como prioridade. Precisamos de alguém que dê a relevância que o tema merece. O Brasil tem 20% da biodiversidade do mundo e metade de seu território com alguma forma de vegetação nativa. Não podemos ter mais tantos retrocessos”, diz. Ex-deputado e integrante da Frente Parlamentar Ambientalista, Agostinho conhece bem os trâmites no Congresso: “Não podemos ter uma comissão subordinada a interesses diversos, como são os da agricultura ou os da mineração. Existem projetos relevantes para a conservação ambiental e existem propostas que são um verdadeiro desastre”.

Alguns projetos de lei considerados especialmente danosos pelos ambientalistas foram aprovados na Câmara e agora estão no Senado. O PL do Veneno (1.459/2022), que facilita a liberação de agrotóxicos e amplia o número de substâncias que podem ser utilizadas nas lavouras, passou pelas comissões e aguarda a votação em plenário. Já os PLs do Licenciamento Ambiental (3.729/2004) e da Grilagem (2.633/2020) aguardam a análise dos senadores nas comissões de Agricultura e Meio Ambiente. Um afrouxa as regras e exigências de licenciamento ambiental em todos os níveis e o outro regulariza ocupações ilegais de terras públicas em todo o Brasil.

Na Câmara, onde um levantamento está sendo feito pelas ONGs, os projetos com implicações ambientais contam-se às centenas. Muitos deles buscam arrebentar com alguns pilares da política ambiental brasileira, como o Código Florestal, a Lei da Mata Atlântica, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e o Plano Nacional de Recursos Hídricos. Na ordem do dia estão dois projetos que preocupam o governo e os movimentos sociais. São o que libera mineração, agricultura industrial e projetos de infraestrutura em Terras Indígenas (PL 191/2020) e o que altera as regras e os critérios de demarcação nas mesmas TIs (PL 490/2007). Ambos passaram pelas comissões da Câmara e aguardam votação em plenário.

Todos esses projetos fazem parte do “Pacote da Destruição” pautado no Congresso Nacional pela dupla Lira e Bolsonaro e denunciado ao mundo por parlamentares e ambientalistas brasileiros que participaram, em dezembro último, da Conferência do Clima da ONU, a ­COP-27, realizada no Egito. Nesse mesmo evento, o presidente Lula – eleito, mas ainda não empossado – e a então futura ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assumiram os compromissos que pretendem colocar o Brasil novamente nos trilhos dos principais acordos ambientais globais. Ter aprovadas leis que signifiquem retrocessos ambientais na Câmara é tudo o que o País não precisa, a começar pelos projetos relativos às Terras Indígenas: “Com os compromissos do presidente Lula nessa área, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a tragédia Yanomâmi, acho difícil as bancadas ruralista e bolsonarista, que hoje em dia são quase a mesma coisa, conseguirem avançar com esse tema”, diz Astrini. A questão talvez seja resolvida pelo Judiciário: “O STF fará a votação do marco temporal, que tem influência sobre esses projetos de lei. Se houver uma definição no Supremo, esses projetos perdem o sentido”.

Será no colegiado que acontecerão os grandes embates sobre projeto de país, prevê Tatto: “É nela que teremos de enfrentar os debates das transições energética e ecológica, da redução das emissões de gases de efeito estufa, de repensar o modelo de reindustrialização, de valorizar a biodiversidade e a floresta em pé”.

“Não há como enfrentar a crise climática com tantos deputados jogando contra”, diz Nilto Tatto

Dirigente do Fórum Brasileiro de ­ONGs pelo Meio Ambiente, Rubens Born afirma que não é admissível que retrocessos legislativos destruam direitos sociais e humanos conquistados: “O Direito consagrou o princípio da vedação de retrocessos. A Comissão de Meio Ambiente não pode ser liderada por um parlamentar que promova interesses econômicos destrutivos”, afirma. Born diz que a integridade ambiental é essencial para a qualidade de vida do povo, e isso está na Constituição. “As crises climática, da biodiversidade e da poluição estão aí, e o que o Brasil precisa fazer é aprimorar a sua legislação e garantir a eficácia das políticas públicas. Não podemos lidar com os desafios humanos de forma mercantilista.”

No Senado, a parceria do governo com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, navega em águas mais tranquilas. Lá, a senadora Leila Barros, do PDT, presidirá a Comissão de Meio Ambiente, secundada pelo senador petista Fabiano ­Contarato. Presidente do colegiado no último biênio, o senador Jaques Wagner, do PT, felicitou os sucessores: “O presidente Lula tem o meio ambiente como pauta prioritária e o Senado cumprirá o seu papel”. Em sua primeira reunião, na quarta-feira 15, a nova composição analisou o PL 2.791/2019, que altera a Política Nacional de Segurança de Barragens. Relatora da matéria, a senadora Leila defendeu o arquivamento. O mesmo deve ocorrer com os PLs da Grilagem e do Licenciamento Ambiental.

É essa tranquilidade que o governo busca na Câmara. “O governo quer enfrentar a crise climática, tocar a agenda ambiental e cumprir os compromissos que o Brasil assumiu no acordo internacional do clima. Para isso, é fundamental que o presidente da Comissão de Meio Ambiente seja alguém que dialogue com o programa de governo de Lula”, afirmouTatto, pouco antes da nomeação de Priante para o posto. “Seja quem for o escolhido, ele não pode trabalhar contra o projeto ambiental do governo Lula, seria desastroso.” •

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ” Território hostil “

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