Sustentabilidade
A volta da asa-branca
Projeto financiado pelo BID e pelo governo britânico transforma a realidade da Caatinga
As imagens de terra arrasada, solo rachado e plantação seca da Caatinga, bioma predominante no Semiárido brasileiro, estão sendo substituídas pela abundância que a agricultura familiar é capaz de prover. No Sertão do Araripe, em Pernambuco, a mandioca produzida em pequenas propriedades passa por um processo de saturação na agroindústria para voltar à mesa do agricultor e compor o cardápio da merenda escolar dos municípios da redondeza. No Piauí, o mel extraído em cidades com baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano, como a pequena São Francisco de Assis, está nas prateleiras das grandes redes de supermercados de todo o Brasil e começa a ganhar o mercado internacional. No interior da Bahia, o licuri, fruto do liculizeiro, uma palmeira típica do Nordeste, transforma-se em iguaria para receitas sofisticadas e vira até cerveja artesanal. E o melhor: toda essa produção vem sendo desenvolvida a partir de tecnologias agrícolas de baixo carbono, dentro do Projeto Rural Sustentável Caatinga (PRS), a partir de sistemas agroflorestais numa integração entre lavoura, pecuária e floresta.
Para desenvolver a produção local com tecnologias agrícolas de baixo carbono foram reservados 5 milhões de dólares
“A maioria das famílias de agricultores na nossa região trabalha plantando mandioca. Quase sempre aquela matéria-prima era vendida a atravessadores. Agora não, a gente produz a mandioca, que é vendida a outra família que desenvolve a goma e a farinha, que vende para a agroindústria. Lá, outras famílias recebem o produto e o transforma em sequilho. Esse sequilho vai para escola e alimenta os nossos filhos”, explica Silvanete Sousa, da Associação de Agricultores Familiares da Serra dos Paus Doias (Agrodoia), no Sertão pernambucano. “Os meninos comem na escola o que os pais produzem. E trabalhamos a autoestima desses jovens, visando à sucessão rural, para que eles não precisem sair da região.”
Além da mandioca, a Agrodoia produz o colorau, a partir do urucum, e se consolida na avicultura, com frangos e ovos, produtos que os agricultores negociam com as prefeituras, para que sejam inseridos na merenda escolar e gerem renda para a região. “O princípio geral é trabalhar com soluções baseadas na natureza, na biodiversidade e na produção agrícola sustentável. São tentativas de imitar aquilo que a natureza fazia antes de ser perturbada, evitando usar produtos químicos”, explica Pedro Leitão, diretor do PRS Caatinga. “A gente parte do princípio da diversidade de ações que os agricultores já desenvolvem dentro dos seus roçados, considerando que o Semiárido é formado por uma diversidade de criações, seja de pequeno, seja de grande porte”, completa Vilmar Lerman, da Agrodoia.
Segundo Francisco Campello, coordenador regional do PRS Caatinga, o Semiárido é uma região promissora na criação de caprinos e na ovinocultura, o que pode abrir um leque de oportunidades de negócios para a agricultura familiar, sem abrir mão das técnicas de baixa emissão de carbono. Ele destaca que é possível o próprio ambiente gerar seus próprios insumos, como os fertilizantes, que são um dos grandes geradores de gases de efeito estufa. Além do baixo custo, qualifica a produção, diferente de outras experiências em que o uso inadequado vai esgotando o ambiente. “A produção vai alimentando a terra e tornando-a mais sadia”, diz Campelo, acrescentando que, na caprinocultura, a tecnologia utilizada procura conservar e regenerar a paisagem. “Eu não preciso buscar novas áreas, basta evitar o desmatamento, o que normalmente acontece com a retirada do recurso florestal para a formação de pastagem. A gente faz justamente o inverso.”
É exatamente o que acontece nos municípios de Nosso Senhor do Bomfim, Monte Santo e Cansação, na Bahia, que vêm desenvolvendo projetos com baixa emissão de carbono, tanto na caprinocultura de leite quanto na fabricação de produtos derivados do licuri e da polpa de frutas nativas, como umbu e maracujá-do-mato. São pelo menos 60 famílias atendidas pelo PRS Caatinga, totalizando mais de 200 pessoas.
Imagem: João Vital
“A gente faz intervenções na mata, para que ela consiga alimentar uma quantidade maior de animais. A Caatinga nativa tem capacidade de suporte pequena. Quando a gente entra com as intervenções, é para enriquecer outras culturas herbáceas de maior valor nutritivo”, explica Daniel Andrade, da Associação Regional dos Grupos Solidários de Geração de Renda (Aresol). Além da caprinocultura, a cerveja de licuri é o grande filão, com grande potencial no mercado de bebidas.
Se, naturalmente, a apicultura é uma atividade que preserva a natureza, a produção de mel desenvolvida pela Cooperativa Mista dos Apicultores da Microrregião de Simplício Mendes (Comapi), no Piauí, vai mais além e foca na produção com base no reflorestamento. “Cultivamos no sistema de integração de plantas com tripla aptidão e a apicultura é o nosso carro-chefe. A sobra de material, as folhas, a gente usa para cobrir o solo e para alimentação de ruminantes. No Nordeste, tem uma incidência de ventos fortes e isso faz com que a água evapore mais rapidamente da terra. Então, as folhas na terra têm a função de barrar essa evaporação, minimizando os efeitos do aquecimento global”, salienta Sérgio Viana, gerente-geral da Comapi.
“Nosso apicultor tem consciência de que seus apiários precisam evitar o máximo de impacto. Então, ele não vai abrir uma área grande, mas o suficiente para colocar as caixas e fazer a disposição delas da melhor forma possível”, completa Janete Dias, que também faz parte da Comapi. Mais de 90% da produção de mel da região é exportada, principalmente para os EUA. Os agricultores reclamam do baixo consumo de mel no Brasil, mas o mel produzido pela Comapi vem ganhando espaço em estados do Sudeste.
O PRS Caatinga faz parte de uma cooperação técnica entre os governos britânico e brasileiro, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cujo objetivo é diminuir a emissão de gases de efeito estufa. O projeto atende 1,5 mil propriedades, cerca de 4 mil pessoas, e está presente em 37 municípios dos estados do Piauí, Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe. No início, em 2020, o programa investiu na produção de conhecimento para desenvolver tecnologias de baixo carbono voltadas para a agricultura familiar. Em parceria com a Universidade Federal do Vale do São Francisco, foi oferecido um curso de extensão rural, formando mais de 700 profissionais na área. A partir daí, e com a escolha de 20 projetos aprovados em edital, o PRS passou a oferecer aos agricultores orientações para o manejo na produção sem gerar gases de efeito estufa, além de custear bens materiais, equipamentos, insumos, sementes e mudas.
Mais de 90% da produção de mel da Comapi, no interior do Piauí, é exportada principalmente para os Estados Unidos
O projeto também estimulou o fortalecimento de cooperativas para que, a partir delas, os produtos gerados na agricultura familiar fossem competitivos para o mercado. “Existe um interesse crescente sobre produtos da agricultura familiar da Caatinga e de que eles sejam produzidos de maneira sustentável. A Caatinga é um ator importante na produção de alimentos e pode contribuir para a segurança alimentar nacional e global”, diz Pedro Leitão. “Países como Alemanha estão desenvolvendo estudos sobre a possibilidade de o Brasil ser um fornecedor de alimentos sustentáveis a partir 2030, e a gente acha que a Caatinga pode se qualificar como ator global.”
O Brasil é apontado como um dos campeões em emissão de gases de efeito estufa, motivo pelo qual o País conseguiu cerca de 80 milhões de libras esterlinas – mais de meio bilhão de reais – em financiamento, com o governo britânico, para desenvolver tecnologias de baixo carbono. Desse total, 5 milhões de dólares (26,4 milhões de reais) foram destinados para o PRS Caatinga. O grande desafio do projeto, programado para ser concluído ainda este ano, é tornar os produtos competitivos a ponto de consolidar-se no mercado de alimentos e ainda com o selo de baixa emissão de carbono. Essa questão foi tema de um fórum realizado nos dias 14 e 15 de março, em Juazeiro, na Bahia. Como resultado do evento, foi criado um planejamento estratégico para dar continuidade ao trabalho do PRS Caatinga, com formação de redes entre todos os envolvidos, e um plano de ação comercial para inserir os produtos da agricultura familiar no comércio geral de alimentos. •
Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A volta da asa-branca’
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