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Afasta de mim esse cálice

Mais uma tentativa de silenciar o deputado Renato Freitas fracassa na República de Curitiba

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Por que a presença do parlamentar incomoda tanto? – Imagem: Dalie Felberg/ALPR
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A fogueira da Inquisição reacendeu na República de Curitiba. Em menos de um ano, o deputado estadual Renato Freitas, do PT, foi arrastado duas vezes para sacrifício no cadafalso político. Em 2022, como vereador, chegou a ser cassado pelo Conselho de ­Ética da Câmara Municipal de Curitiba, acusado de “invadir” a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito durante um protesto pela morte do jovem congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro. Voltou à Casa por conta de uma decisão judicial. Agora é o coronel Hudson Teixeira, secretário de Segurança Pública do governo Ratinho Jr., quem ergue novamente a tocha.

Na sessão de 7 de março, Freitas subiu à tribuna da Assembleia Legislativa e fez duras críticas à violenta atuação da Polícia Militar do Paraná. De posse de um documento divulgado pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, o Gaeco, uma unidade­ do Ministério Público Estadual, denunciou a morte de 483 “suspeitos” em confrontos com a PM em 2022, crescimento de 17,3% em relação ao ano anterior. Quase 60% das vítimas eram pretas ou pardas, razão pela qual criticou a “seletividade das forças de segurança pública contra os negros”. Relembrou ainda dois casos cujas abordagens resultaram em vítimas fatais.

No dia seguinte, o coronel, o mesmo que admitiu descumprir ordens judiciais para proteger “patriotas” que protestavam contra a eleição do presidente Lula nas rodovias do Paraná, redigiu um ofício endereçado ao presidente da Assembleia Legislativa, Ademar Traiano, do PSD. Na peça, Teixeira insta os parlamentares da Casa a aprovar uma “representação em desfavor” de Freitas. Ele alega que o deputado petista fez “ilações infundadas, descabidas e distorcidas da rea­lidade proferidas a militares estaduais e à Polícia Militar do Paraná”. Segundo o secretário, as operações da corporação são realizadas com “respeito aos Direitos Humanos, ao Estado Democrático de Direito e à dignidade da pessoa humana”.

O documento não chegou à Assembleia Legislativa. Foi interceptado pela Casa Civil do governo Ratinho Jr. e só veio à tona porque circulou em grupos de WhatsApp dos militares da corporação até ser publicado nas redes sociais. ­CartaCapital enviou e-mail à assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança Pública para saber que tipo de punição o coronel Hudson Teixeira pretendia e se o governador, em viagem oficial ao Japão e à Coreia do Sul, tinha conhecimento da medida. Segundo a pasta, “em momento algum foi requerida a cassação do parlamentar”, o objetivo do documento seria apenas de “esclarecer que a corporação defende os interesses da população paranaense”. A Casa Civil, por sua vez, diz ter recebido o ofício, “mas optou por não encaminhar à Assembleia Legislativa”.

Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná, o advogado Renato Freitas, de 39 anos, foi eleito deputado estadual em 2022 com 57.880 votos. “Carrego na pele as cicatrizes desses crimes”, afirmou em seu recente discurso. A mãe, uma nordestina nascida na Paraíba, sempre foi seu ponto de apoio. O pai, presidiário, veio para o Paraná transferido de Sorocaba, interior de São Paulo. A família o acompanhou. “Eu não era nem registrado quando cheguei aqui”, relembra. Todos passaram a viver em Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba, em um bairro “muito pobre, violento, sem qualquer estrutura”.

Aos 12 anos, Renato Freitas começou a trabalhar. Foi auxiliar de pedreiro, empacotador, vendedor e faxineiro. “Pensava o tempo todo no sofrimento da minha mãe, que sempre foi empregada doméstica”, conta. Amigos de infância se envolveram com o tráfico de drogas e acabaram presos ou mortos. Seu irmão mais velho foi assassinado com um tiro na cabeça aos 23 anos. “Estava trabalhando e aconteceu um assalto.” Foi quando concluiu que o único caminho para sair daquela miséria eram os estudos.

O coronel-secretário Hudson Teixeira deu um tiro no pé ao cobrar punição pelas críticas do parlamentar à violência policial

Em 2005, foi aprovado no processo seletivo da UFPR. Foi na universidade que começou a se interessar por política. Escolheu estudar Direito porque queria lutar por mais justiça social. “Vivi e senti na pele não somente a miséria, mas o racismo e o preconceito. Sempre quis fazer alguma coisa pelos meus iguais”, desabafa o hoje deputado.

“Freitas é vítima do racismo e do preconceito de classe social”, avalia Andréa Pires da Rocha, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. As estruturas sociais no Brasil são enrijecidas e alimentadas por opressões que compõem as nossas relações há mais de 500 anos, explica. “O lugar reservado ao negro era a senzala. Depois, a rua, o trabalho precário, a miséria, a prisão, os hospitais psiquiátricos e as covas dos cemitérios. A presença de Freitas no Legislativo paranaense subverte ‘a ordem das coisas’.”

Advogado e mestre em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR, André Luiz Nunes da Silva engrossa o coro dos que acreditam que o parlamentar é vítima de racismo explícito. “É evidente que ­suas origens e sua postura de homem negro na sociedade curitibana têm sido um choque de realidade no Parlamento”, observa Silva. “Como presidente da Comissão de Igualdade Racial, ele conhece como poucos os cenários de miséria e violência. Conhece os bairros, os bolsões de pobreza.”

No Paraná, as pessoas pretas e pardas representam 27,4% da população. Diante de um quadro de desemprego elevado, evasão escolar em alta e narcotráfico exercendo poder e influência, o aparato repressivo estatal atua nas periferias com rigor e de forma improvisada, identificando os negros como ameaças, não como as principais vítimas desse excludente sistema, acrescenta Silva. “Onde o Estado está ausente nas políticas públicas para a construção da cidadania, a força policial opera de forma a reprimir e exterminar os ‘inimigos’”, lamenta o advogado.

Para o psicólogo Márcio Cesar ­Ferraciolli, doutor em Sociologia e coordenador do Observatório Social de Saúde Prisional da UFPR, questionar é um ato democrático, mas pedir uma “representação em desfavor” de alguém é outra situação. O professor observa que o ofício encaminhado pelo secretário Hudson Teixeira deveria rebater com dados e argumentos as declarações do denunciante. “Pedir uma representação contra a fala de um parlamentar que se expressou na sessão da Casa, no parlatório à frente de seus pares, sem fazer o contraditório, pode ser considerado um ato de repressão, um ato antidemocrático.”

A ratoeira plantada pelo coronel ­Hudson Teixeira acabou fechando em sua própria mão. Na segunda-feira 13, o deputado Ademar Traiano, presidente da Assembleia Legislativa, saiu em defesa do colega. Observou que o petista não faltou com o decoro e que a crítica faz parte da atividade parlamentar. “Sua fala foi focada em algumas questões relacionadas à Polícia Militar, mas não faltou com decoro. Ele tem o direito de falar.” •

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Afasta de mim esse cálice’

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