

Opinião
Retrocesso democrático
A escolha do procurador-geral da República pelo método da lista tríplice substitui o interesse nacional pelo corporativo


A ideia de lista tríplice para escolher o procurador-geral da República não representa nenhum avanço democrático, mas um retrocesso. Na prática, o que acontece com o método da lista tríplice é que a nomeação deixa de pertencer à soberania popular para ser entregue a um poder corporativo. Passa para as mãos do sindicato, ou da associação, ou da agremiação, ou seja lá de quem for – mas uma coisa é certa, sai das mãos do povo. Ao proceder dessa forma, ao ceder o poder de nomeação à corporação, o presidente não apenas aliena os poderes que o povo lhe confiou por meio da eleição, mas, pior do que tudo o mais, permite que o interesse nacional seja substituído por um interesse particular, um interesse de classe. Sucede que essa classe já tem poderes formais muito relevantes, que lhe foram outorgados pela lei e pela Constituição. E os últimos anos de Lava Jato foram suficientes para perceber que esse tipo de poder não se limita sozinho – ele vai até onde o deixarem ir.
E mais. Essa lista tríplice não significa um aumento de autonomia do Ministério Público, mas uma desresponsabilização do Ministério Público. No fundo, com a escolha por meio da lista tríplice dá-se satisfação a uma velha aspiração da corporação, não prestar contas perante ninguém. Não se trata de nenhuma ambição de imparcialidade, trata-se de poder. Em todo lado onde foi usada a desculpa da independência para obter mais poder para a corporação dos procuradores da República, o que se obteve foi sempre um contrapoder pretensamente purificado, alimentado de um ressentimento contra o sistema político, de consequências nada democráticas. Bem-vistas as coisas, a lista tríplice coloca cruamente o dilema democrático – é a democracia que faz o direito ou é o direito que faz a democracia?
Talvez se aprenda alguma coisa se colocarmos o problema em perspectiva. No fundo, a lista tríplice não é mais do que um sintoma de um dos males mais conhecidos e mais comuns das democracias contemporâneas – o mal corporativo. O que se passa hoje em dia nas democracias é que a promessa ideal de um conjunto de indivíduos autônomos, soberanos e iguais, que com o seu voto constroem a vontade geral e dão expressão à sociedade política, não existe mais. É uma promessa não cumprida. O que existe de fato são organizações, sindicatos, associações, partidos que disputam entre si a supremacia e as decisões coletivas nos seus países – esses, sim, são os verdadeiros protagonistas da democracia. Assim sendo, em muitos casos o sistema político de governo tem tendência a limitar-se à tarefa de arbitrar os interesses divergentes representados por grupos de interesse. Norberto Bobbio chamou a este fenômeno a “desforra dos interesses”. A lista tríplice insere-se nessa linha política neocorporativa.
Acresce ainda a eterna tentação tecnocrática. Não deveríamos concordar que a escolha deve ser entregue a quem sabe, e não a quem o povo escolhe? Não será que nós, os especialistas, os conhecedores, não saberemos melhor que ninguém quem é o mais competente, o mais sabedor? Por que deixar essa decisão nas mãos dos políticos? Por que não entregar a decisão a quem sabe? A questão é justamente essa – a democracia assenta na certeza de que todos estão em condições de decidir acerca de tudo, enquanto a tecnocracia pretende que apenas sejam chamados a decidir os que sabem sobre a matéria a decidir. É por essa razão que a soberania popular se afasta da política monetária e que os Bancos Centrais reclamam a sua independência da política, isto é, do voto e da vontade do povo. É por essa razão que as democracias cada vez mais entregam poderes estatais às chamadas entidades reguladoras independentes – as comunicações, a concorrência, a comunicação social e por aí afora.
Esse movimento é profundamente ideológico e destina-se a retirar da órbita da soberania popular os assuntos importantes da governança. A lista tríplice é apenas um subproduto dessa tendência política a que a esquerda aderiu no passado. Espero que tenha aprendido a lição. Pela minha parte, não quero que os assuntos da guerra e da paz sejam entregues a militares, nem que os assuntos do comando da Justiça Penal sejam entregues a procuradores. Quero que seja o povo a decidir em eleições livres. E a única forma de decidir é dizer ao povo que, quando escolhe o presidente, está a confiar-lhe a tarefa de escolher também o procurador-geral da República com as caraterísticas que a lei impõe para esse cargo. Esta é a única doutrina que uma República democrática deve acolher. •
Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Retrocesso democrático’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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