Mundo
Bravura indômita
A censura imposta pela BBC a Gary Lineker apenas amplificou as críticas à política migratória do premier Rishi Sunak


No Reino Unido, poucas figuras do futebol são tão queridas quanto Gary Lineker. Artilheiro da Copa de 1986, o atacante despediu-se dos gramados há quase 30 anos, com um saldo de 48 gols pela seleção inglesa e o apelido de “Mister Nice”, por sua atuação irrepreensível dentro de campo: jamais foi expulso de uma partida. Na verdade, ele nem sequer levou um único cartão amarelo ao longo da carreira – sim, Neymar, é possível destacar-se no esporte sem simular faltas ou reclamar da arbitragem. Após a aposentadoria, Lineker virou comentarista esportivo e, desde 1999, comanda o Match of the Day, popular programa da BBC que repercute a rodada do Campeonato Inglês. Não por acaso, o seu afastamento provocou uma crise sem precedentes na tevê pública, com reverberações na política britânica.
O ex-atleta foi suspenso por criticar nas redes sociais a proposta anti-imigração apresentada pelo primeiro-ministro Rishi Sunak em 7 de março. Depois do controverso acordo firmado com Ruanda pelo antecessor Boris Johnson, que se dispôs a pagar 120 milhões de libras esterlinas – o equivalente a 764,3 milhões de reais – para a nação africana abrigar os solicitantes de asilo político que entram no Reino Unido de forma irregular, o atual premier anunciou que deportaria rapidamente os imigrantes ilegais detidos em botes no Canal da Mancha para os seus países de origem ou, em caso de ameaça concreta à vida deles, para um terceiro país considerado seguro. O próprio governo britânico admite que a iniciativa viola tratados internacionais assumidos pelo Reino Unido, mas Lineker acabou punido por associar a nova política migratória às práticas da Alemanha nazista.
“Não há um enorme fluxo. Recebemos bem menos refugiados do que outros grandes países europeus. Isso é apenas uma política imensamente cruel direcionada às pessoas mais vulneráveis com um linguajar que não difere do usado pela Alemanha nos anos 1930”, disse o apresentador da BBC ao responder um comentário no Twitter, onde possui quase 9 milhões de seguidores. Foi o que bastou para receber um gancho da emissora, a impor aos jornalistas da casa rígidas regras de uso das redes sociais em nome da imparcialidade. “Esse compromisso é fundamental para a nossa reputação, nossos valores e a confiança do público”, diz o manual da tevê pública.
O caso de Lineker possui, porém, uma série de nuances. Em primeiro lugar, ele não é jornalista, e sim apresentador e comentarista de um programa esportivo. Além disso, o contrato com o ex-atleta não menciona qualquer veto a manifestações políticas nas redes sociais. Em diversas outras ocasiões, ele pôde opinar livremente sobre temas como o Brexit, expressando sua firme oposição à retirada do Reino Unido da União Europeia. Chegou, inclusive, a defender um novo referendo sobre o tema em 2018. Retirá-lo da programação da BBC foi visto como um injustificado ato de censura por colegas do programa, personalidades do mundo esportivo, líderes do oposicionista Partido Trabalhista e amplos setores da sociedade britânica. “É um mundo realmente difícil para se viver, mas, se entendi direito, esta é uma opinião sobre direitos humanos e ela deveria poder ser dita”, criticou o técnico alemão do Liverpool, Jürgen Klopp. Até mesmo os torcedores do Swansea City, clube no qual o veterano jamais atuou, manifestaram solidariedade ao apresentador antes da partida com o Middlesbrough, no sábado 11, pela segunda divisão do campeonato inglês.
Ícone do futebol inglês, o apresentador comparou a proposta de deportar solicitantes de asilo às práticas da Alemanha nazista
Diversos colegas da BBC recusaram-se a entrar no ar em protesto contra a punição imposta a Lineker. O boicote fez com que o Match of the Day, principal mesa-redonda de futebol do país, tivesse apenas 20 minutos de duração, sem qualquer comentário. Normalmente, ele ocupa 80 minutos da grade da emissora. Na verdade, toda a programação esportiva da tevê pública acabou comprometida. Atrações como o Football Focus e o Final Score não foram veiculadas. A cobertura da Super Liga de Futebol Feminino, no domingo 12, tampouco teve apresentação prévia, como é de praxe. Estrela mais bem paga da BBC – entre 2020 e 2021, ele recebeu cerca de 1,35 milhão de libras (8,5 milhões de reais) –, Lineker passou a ser assediado por emissoras privadas após a suspensão. Segundo o jornal The Sun, a BT Sport e a ITV correram para apresentar propostas ao ícone do futebol inglês.
Na tentativa de se desvincular do imbróglio, o premier Rishi Sunak descreveu Lineker como um “grande jogador de futebol” e “apresentador talentoso”, e disse torcer por um acerto entre o apresentador e a BBC. “Mas é justamente um assunto deles, não do governo”, fez questão de pontuar. O estrago estava feito. O líder trabalhista Keir Starmer acusou a tevê pública de “ceder” à pressão do governo conservador. “Eles erraram muito e, agora, estão muito, muito expostos”, resumiu ao The Observer, edição dominical do jornal The Guardian. “No centro disso está o fracasso no sistema de asilo. E, em vez de assumir a responsabilidade pela bagunça, o governo lança a culpa em qualquer outra pessoa, Lineker, a BBC, funcionários públicos.”
Segundo o governo britânico, mais de 45 mil imigrantes entraram ilegalmente no Reino Unido no ano passado, após perigosas travessias de bote ou barco pelo Canal da Mancha, deixando o “sistema de pedidos de asilo sobrecarregado”. Em 2018, o número girava em torno de 300. A decisão de deportá-los o mais rápido possível, popular entre eleitores conservadores, tornou-se prioridade para Sunak. O premier justifica que a maioria dos solicitantes de asilo é composta de imigrantes econômicos, e não refugiados. Mas como separar os casos sem uma análise criteriosa?
Sob crescente pressão para renunciar, o presidente da BBC, Richard Sharp, e seu diretor-geral, Tim Davie, só conseguiram respirar aliviados na segunda-feira 13, após anunciarem um acordo com Lineker. “Gary é uma parte valorosa da BBC e eu sei o quanto a BBC significa para ele. Estou ansioso para que ele volte a apresentar nossa programação no próximo fim de semana”, disse Davie, que também prometeu fazer uma análise independente das diretrizes da emissora sobre o uso de redes sociais.
Lineker, por sua vez, agradeceu aos colegas na BBC Sport pela “extraordinária demonstração de solidariedade” e acrescentou ter “orgulho imensurável de trabalhar na melhor e mais justa emissora do mundo”. Não recuou, porém, das críticas à política migratória de Sunak: “Por mais difíceis que esses últimos dias tenham sido para mim, eles simplesmente não se comparam com precisar deixar sua casa para fugir da perseguição ou da guerra, para buscar refúgio em uma terra distante. É acalentador ver a empatia que muitos de vocês têm com o sofrimento deles”. •
Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bravura indômita’
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