

Opinião
O xadrez da desinformação
Não se trata de ingenuidade. Trata-se de motivações e preservação
Escolha o seu bolsonarista favorito. Sabe aqueles que até hoje frequentam grupos de desinformação simpáticos ao ex-presidente no Whatsapp e Telegram? Os que consomem notícias do Jornal da Cidade Online? Então, escolha o seu favorito e tente enganá-lo com uma fake news sobre Jair Bolsonaro. Talvez uma que dê conta de que ele adora cheirar cocaína e confraternizar com travestis.
Eles dificilmente serão convencidos da autenticidade dessa invenção. A rigor, eles sequer dão sinais de que podem ser persuadidos com verdades, correto? Escolha seu favorito, mais uma vez, e conte verdades sobre Jair Bolsonaro, a exemplo de como o ex-mandatário construiu um patrimônio milionário com esquemas de peculato envolvendo assessores fantasmas. Não serão convencidos.
Mas esse problema (ou fenômeno) vai muitíssimo além dos dogmatismos da extrema-direita brasileira. Tente despejar um oceano de evidências acumuladas e meta-análises dando conta da inocuidade da homeopatia para um adepto da prática. Não será nem um pouco absurdo se você ouvir que a prova da eficácia desse pseudo-tratamento está no fato de que a pessoa acredita ter se curado após ingerir aquelas diluições (evidência anedótica). Nada diferente de um Alexandre Garcia dizendo que Jair Bolsonaro era a evidência científica da eficácia da hidroxicloroquina ou de alguém que jura de pés juntos que se curou do câncer ou da AIDS graças a algum ritual em alguma igreja evangélica.
A relação que as pessoas estabelecem com a informação e o conhecimento perpassa, fundamentalmente, pelos sistemas de crenças que sustentam e compartilham. Vejam o caso da ciência. Em 2018, Emily Pechar, Thomas Bernauer e Frederick Mayer demonstraram, com um experimento, que independentemente da ideologia política, as pessoas tendem a refutar ou a abraçar um consenso científico a depender do tipo de ciência em questão e das atitudes que sustentam face a governos e corporações.
Isso significa que alguém mais à esquerda pode aderir às evidências científicas que comprovam a existência das mudanças climáticas e a antropogenia a ela relacionada, mas pode refutar as evidências de que alimentos geneticamente modificados não são nem mais nem menos danosos à saúde humana que os não-modificados. Alguém mais à direita pode fazer exatamente o contrário porque tenderá a resistir às implicações de restrições impostas por governos a empresas como medida de contenção do avanço das mudanças climáticas – e isso, para alguém à direita com convicções libertárias, é inadmissível.
Basicamente, o que está em jogo aqui é o modo como negociamos com as informações e o conhecimento numa relação direta com nossos valores, crenças e visões de mundo. E, por que não, com nossas identidades sociais ou tribais. É isso que está no cerne do problema da desinformação ou das fake news. As pessoas não consomem esses conteúdos e os passam adiante porque são, simplesmente, ingênuas e manipuláveis. Elas o fazem porque, de alguma forma, aquilo com o qual se depararam reforça suas convicções prévias e se ajusta ao seus sistemas de crenças. Quando isso não acontece, a regra é descartá-lo. Há critérios claros.
Nós todos e todas temos a tendência de evitar informações, dados e demonstrações que colocam em xeque as nossas convicções. Em outras palavras, corremos feito o diabo da cruz da chamada dissonância cognitiva. Isso porque tendemos a adotar o viés de confirmação como critério para lidar com os fatos: buscamos aquilo que nos dá razão e não o que invalida nossas crenças.
Eis a sinuca de bico em matéria de combate à desinformação. Se quisermos acreditar que o problema está na falta de instrução ou de competências cognitivas e hermenêuticas dos que se deparam com esses conteúdos, lá vamos nós pensar em formas de educação e esclarecimento. Contudo, essa é uma falsa solução para, logicamente, uma falsa premissa.
Como demonstrou Stephanie Jean Tsang em artigo publicado em 2020, a disseminação de fake news tende a ser estimulada pelo raciocínio motivado (motivated reasoning), ou seja, “as pessoas tendem a consumir informações motivadas pela preservação de suas identidades pessoais que as associam a um determinado grupo com o qual possuem alguma afinidade”. Em outras palavras, absorver ou refutar conteúdos falsos, falsas notícias ou notícias falsas (ou mesmo a verdade factual e demonstrada!) depende muito menos de um exame cuidadoso e intelectualmente honesto ou de competências hermenêuticas do que da necessidade de manter intactos nossos sistemas de crenças que conformam nossas identidades sociais, políticas e ideológicas.
Neste ponto, convido ao seguinte raciocínio: não vivemos mais num ecossistema de comunicação centralizado nos veículos tradicionais da imprensa. Vivemos uma era da descentralização com uma profusão inédita de fontes de informações e conteúdos os mais variados. Diante de tantas opções, qual é a tendência? Buscar ou reter cognitivamente informações e evidências que colidam com nossas convicções ou buscar, abraçar e fazer circular aquelas que reforçam as nossas convicções prévias? Eis o cerne do problema da desinformação.
Continuarei tratando do tema na próxima coluna.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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