Economia
Traquinagens monetárias
Sim, as decisões capitalistas dependem do futuro esperado, mas ele é “construído” por definições no presente


“O Brasil é campeão mundial de juros?”, indagam João Camargo, Camila Funaro Camargo e a economista Mariam Dayoub, em recente artigo na Folha de S.Paulo. Em suas considerações, os autores empenham-se em explicar: “Os rankings que colocam o Brasil como campeão consideram a diferença entre a taxa de juros nominal corrente e a inflação acumulada em 12 meses, chamada de taxa de juros real ex-post. Porém, é a taxa de juros real ex-ante que importa para as decisões de consumo e investimento dos agentes econômicos. Ela é medida como a diferença entre a taxa de juros de mercado para um ano e as expectativas de inflação 12 meses à frente”.
O debate atual a respeito da política monetária nos aconselha a retroceder à “revolução das expectativas racionais” dos anos 1970. A ideia central não é nova: o comportamento dos indivíduos e das empresas depende das expectativas a respeito do futuro. John Maynard Keynes introduziu no debate econômico a incômoda convivência entre expectativas e incerteza radical nas decisões dos possuidores de riqueza que sobrevivem na economia monetária-financeira-capitalista. Na Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Keynes lamentou: “Para falar com franqueza, temos de admitir que as bases de nosso conhecimento para calcular o rendimento provável, nos próximos dez ou mesmo cinco anos, de uma estrada de ferro, uma mina de cobre, uma fábrica de tecidos, um produto farmacêutico patenteado, uma linha transatlântica de navios ou um imóvel na City de Londres se reduzem a bem pouco e às vezes a nada”.
A novidade da teoria das “expectativas racionais” está no suposto que afirma a capacidade dos indivíduos e das empresas em obter a melhor avaliação possível do futuro. Aqui, o economista Olivier Blanchard introduz uma ligeira dificuldade “técnica” omitida pelos autores do artigo exibido na Folha: as decisões dependem do futuro esperado, mas (na vida dos homens) o futuro esperado é “construído” pelas definições do presente. A incerteza keynesiana esgueirou-se sorrateiramente nas cidadelas dos guardiões das expectativas racionais.
Em sua versão dominante e dogmática, a chamada “ciência econômica” apoia-se, portanto, em um conjunto de pressupostos simples: os indivíduos baseiam suas decisões em expectativas racionais, os mercados são bem organizados e o sistema de preços, rígidos ou flexíveis, funciona para alocar eficientemente os recursos. O dinheiro é o lubrificante das trocas realizadas pelos indivíduos racionais.
Está excluída a demanda de moeda como reserva de valor, ou seja, a busca do dinheiro pelo dinheiro, como forma geral da riqueza. Por isso, os ativos financeiros e reais são altamente intercambiáveis e o dinheiro é uma mercadoria como as outras. Na lacração do dinheiro como forma geral da riqueza, está ancorada a teoria da moeda como um mero intermediário quantitativo.
Assim, a pedra angular da “boa política econômica” é a confiança na inflação como indicador principal dos desvios do produto potencial e estimativas do hiato do produto. Se há fortes tensões inflacionárias, a economia estaria pressionada a crescer acima do produto potencial. Se há deflação, cresceria abaixo.
As sucessivas crises não deram sossego à tigrada do equilíbrio da economia “real”
Entre os diversos pressupostos que contribuem para esse resultado, vamos nos concentrar na ausência nos modelos dominantes da demanda de moeda como riqueza potencial, uma ponte entre o presente e o futuro. Trata-se de uma “solução” elegante para possibilitar modelos em que essa ponte é mais segura no encaminhamento racional da poupança para o investimento. Essa é decisão crucial entre consumir recursos reais hoje ou postergar esse consumo para o futuro nos regaços do investimento. Maravilha: a renúncia a um prato de comida transmuta-se em uma fábrica de alfinetes. Nessa visão, poupança e financiamento são equivalentes.
São muitas as reações ao “descolamento” da teoria dominante diante do movimento concreto das economias contemporâneas. Minsky construiu uma hipótese “keynesiana” sobre a formação de preços de ativos numa economia em que prevalece a moeda de crédito criada pelos bancos. Enquanto a teoria convencional cuida de examinar as condições de equilíbrio no intercâmbio de mercadorias, Minsky coloca o crédito e a finança no centro da economia capitalista – o modelo da feira livre versus o “paradigma de Wall Street”. Para ele, a concorrência em busca da maximização do ganho privado determina resultados que a ação dos indivíduos racionais não pode antecipar. As decisões privadas são tomadas em condições de incerteza radical e, por isso, estão sempre sujeitas à subavaliação do risco e à emergência de comportamentos coletivos de euforia que conduzem à fragilidade financeira e a crises de liquidez e de pagamentos. Minsky descreve as etapas do ciclo crédito e formação de preços dos ativos em que as interações subjetivas entre os participantes do mercado não raro provocam a má precificação de ativos e distorções na alocação de recursos.
As sucessivas crises financeiras não deram sossego à tigrada do equilíbrio da economia “real”, pois os mercados financeiros acolhem o dinheiro em sua forma mais perturbadora e demoníaca: reserva de valor. Assim, aumentos na taxa de juros provocam também a desvalorização dos ativos financeiros, como títulos de dívida e ações de empresas, pois sua precificação a valor presente considera o desconto dos fluxos diferidos no tempo a partir da aquisição daquele ativo, seja ele um título de renda fixa ou capital acionário. Portanto, quanto maior a taxa de desconto, menor o valor presente do ativo. A taxa de juros, enquanto custo de oportunidade, determina essa taxa de desconto.
As decisões capitalistas supõem, portanto, a especulação permanente a respeito do futuro, o que envolve a contínua reavaliação do presente. Tais decisões são intrinsecamente intertemporais e não têm bases firmes, isto é, não há “fundamentos” que possam livrá-las da incerteza e da possibilidade do risco sistêmico. Apoiados em convenções e constrangidos pela concorrência, os detentores de riqueza são obrigados a tomar decisões que podem dar origem a situações que culminam na exuberância irracional, na decepção das expectativas, na crise e na desvalorização da riqueza. •
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Traquinagens monetárias’
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