Política
Esquecidas nas galerias
Documentário procura dar visibilidade às detentas, abandonadas pelo Estado e, por vezes, pela própria família
Com lançamento previsto para maio, o documentário Olha pra Elas, dirigido por Tatiana Sager e Renato Dornelles, expõe a dramática realidade de mulheres encarceradas em Porto Alegre, um enredo de sofrimento, angústia e muita solidão. “Há tempos trabalhamos com a temática do encarceramento no Brasil, mas sentimos a necessidade de dar uma atenção especial para as detentas, porque elas estão sujeitas a provações ainda maiores que as impostas aos presos do sexo masculino, como o abandono familiar”, comenta Sager. “Nosso propósito é mostrar a discriminação, a violência de gênero e tentar tirar a invisibilidade dessas mulheres.”
Os depoimentos se intercalam, em meio a crônicas do cotidiano e desoladoras estatísticas. Quase todas as detentas possuem na família alguma figura masculina envolvida com o crime. A maioria não tem o ensino fundamental completo e somente 11% delas concluíram o Ensino Médio. Sete em cada dez presas são pretas ou pardas. Em situação de vulnerabilidade, a maior parte tem envolvimento com drogas e sofreu violência sexual. Mais de 80% das mulheres encarceradas nasceram e cresceram em áreas periféricas, violentas e carentes do acesso à educação, à saúde e ao lazer.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, 62% das mulheres encarceradas foram acusadas de tráfico de drogas. Dentro desse universo, três em cada quatro dizem que a entrada no mundo das drogas deu-se por influência do marido, namorado ou companheiro. Os mesmos que, depois, se negam a visitá-las nos presídios.
Desde 2000, o número de brasileiras presas anualmente quadruplicou, levando a um crescimento de 60% da população carcerária feminina no País, revela um estudo do Instituto de Pesquisas em Políticas Criminais e de Justiça (ICPR, na sigla em inglês) da Universidade de Londres, no Reino Unido. Com isso, o Brasil ultrapassou a Rússia e hoje ostenta a terceira posição no ranking dos países com mais mulheres atrás das grades. A World Female Imprisonment List revela que temos 42 mil mulheres encarceradas, número inferior apenas ao dos EUA, com 211 mil detentas, e ao da China, com 145 mil. Já a taxa de encarceramento feminino, que era de seis presas para cada 100 mil mulheres, subiu para 20 em 2022.
77% das presas por tráfico foram levadas ao mundo das drogas por influência dos companheiros, que depois desaparecem
Instalações precárias, falta de itens de higiene pessoal, assistência médica deficiente, ausência de creches e berçários para os filhos… Essas são algumas das consequências mais visíveis do encarceramento em massa. Na falta de absorventes íntimos, muitas detentas recorrem a métodos arcaicos para lidar com a menstruação, como o uso de miolo de pão. De um total de 1.420 estabelecimentos prisionais no Brasil, apenas 103, ou 7% do total, são exclusivamente femininos. A vasta maioria das penitenciárias possui instalações físicas e regras de convivência pensadas para o público masculino, sem qualquer adaptação para as mulheres.
Esses problemas foram objeto de debate na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Na avaliação do deputado estadual Leonel Radde, do PT, vice-presidente da Comissão de Segurança Pública, o objetivo do evento é dar visibilidade aos problemas vivenciados pelas mulheres encarceradas e pensar em soluções. “Precisamos reconhecer as falhas do Estado e mudar essa realidade.”
As defensoras públicas Cíntia Luzzatto e Liziane Hartmann atribuem a invisibilidade do problema à própria violência de gênero. “Somos um povo conservador e machista, com uma histórica e cultural hierarquia entre homens e mulheres”, diz Luzzatto. Segundo elas, as mulheres ficam emocionalmente mais abaladas que os homens no cárcere. Um dos motivos é o abandono, não só dos companheiros, mas por vez de toda a família.
O documentário Olha pra Elas enfatiza muito esse ponto, que traz enorme sofrimento para as apenadas. Em um universo de 75 detentas, apenas cinco recebiam visitas com alguma regularidade. E não são poucos os casos de mulheres que, na ausência de familiares ou amigos dispostos a assumir a guarda dos filhos, são obrigadas a entregá-los para abrigos.
Com 23 anos de experiência como juiz da Execução Penal, dez deles atuando no presídio feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, Sidinei José Brzuska observa que muitas mães poderiam ser encaminhadas para a prisão domiciliar, mas acabam esquecidas nas galerias. “O que os olhos não veem o coração não sente”, diz o magistrado. “A mera juntada de uma certidão de nascimento no processo não toca o coração de ninguém.”
Entre os defensores dos direitos humanos, é grande a expectativa em relação à forma como o governo Lula pretende enfrentar o problema. CartaCapital procurou a assessoria do ministro Silvio Almeida para saber quais são as iniciativas previstas para melhorar as condições dos presídios femininos, mas não obteve retorno até a conclusão desta reportagem. •
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Esquecidas nas galerias’
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