Política
Sem razões para celebrar
O Dia da Mulher tem gosto amargo no país recordista em feminicídios


As vésperas do Dia Internacional da Mulher, Jiane da Silva Vicente, de 43 anos, foi assassinada pelo namorado, Almir Rogério Alves Machado, no município gaúcho de São Borja. Vítima de outras agressões, ela solicitou medida protetiva em dezembro de 2022. Dois meses depois, comunicou à polícia que reatou o relacionamento e pediu a retirada das sanções. Dias depois, foi encontrada morta com um golpe de faca no pescoço. Machado confessou o crime. Na mesma semana, a vereadora Yanny Brena, de 26 anos, foi encontrada morta ao lado do companheiro Rickson Pinto, em Juazeiro no Norte, no Ceará. A polícia trabalha com a hipótese de feminicídio seguido de suicídio. Ambos os crimes têm em comum o fato de as vítimas terem sido assassinadas em decorrência do ódio de gênero, pelo simples fato de serem mulheres.
Outro ponto em comum é o fato de a violência ter sido praticada pelos próprios parceiros, dentro de suas casas. Infelizmente, trata-se de um crime cada vez mais recorrente. Em média, uma mulher é assassinada a cada sete horas no Brasil, segundo a Rede de Observatórios da Segurança. Em 2022, foram registrados 495 feminicídios no País. Na maioria das vezes, os crimes acontecem no ambiente doméstico e, em 75% dos casos, o responsável é o marido, namorado ou ex-companheiro da vítima.
Esses índices levaram o Brasil a mudar a legislação em 2015. Desde então, o feminicídio é qualificado como crime hediondo, com pena mais dura. Ainda assim, as mortes de mulheres não diminuíram no País. Ao contrário, nos últimos anos houve aumento significativo. Não por acaso, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, prometeu ampliar as políticas de proteção e acolhimento às vítimas de violência doméstica no tradicional pronunciamento de 8 de março, em rede nacional de rádio e tevê.
A socióloga Suelen Aires Gonçalves, que pesquisa violência de gênero há mais de dez anos, observa que o feminicídio, ao contrário do homicídio comum, pode ser prevenido. “Trata-se de um crime premeditado, anunciado, que deixa rastros. É um ponto final na vida da mulher, mas antes dele há muitas vírgulas”, afirma. “Os familiares e amigos percebem que a vítima corre risco. Por isso, é um crime que pode ser evitado.” A melhor forma de barrar a violência antes que ela seja irreversível, explica a pesquisadora, seria a existência de políticas públicas efetivas, capazes de promover uma rede de apoio e acolhimento às vítimas. “Se o Estado tivesse compromisso com a vida das mulheres e fizesse investimentos públicos pesados para combater o feminicídio, a realidade, com certeza, seria outra.”
Doutora em Sociologia pela UFRGS, Gonçalves chama atenção para o fato de que, ao fazer um recorte do problema por raça e classe social, há situações muito piores. “No Judiciário, a maior parte das condenações por feminicídio tem como vítima uma mulher branca. Quando a gente fala em mulheres negras, trabalhadoras sexuais e pessoas em situação de extrema pobreza, por vezes nem sequer há o registro da ocorrência. Elas estão completamente à margem da sociedade, em todos os momentos da vida, até quando sofrem a mais grave das violências. Por isso, é um grande desafio pensar o tema do feminicídio compreendendo a diversidade das mulheres.”
Não foram apenas os casos de feminicídio que aumentaram nos últimos anos. Segundo uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todas as formas de violência contra a mulher cresceram em 2022. O estudo Visível e Invisível: A Vitimização das Mulheres no Brasil revela que 50.692 brasileiras sofreram violência diariamente no ano passado. E, como alertou Gonçalves, as maiores prejudicadas são as mulheres negras, que representam 65,5% das vítimas.
Não é tudo. Ao menos um terço das brasileiras (33,7%) com 16 anos ou mais sofreram violência física e/ou sexual por parte de parceiro íntimo ou ex-companheiro em algum momento da vida, porcentual bem superior à média mundial, de 27%, segundo a Organização Mundial da Saúde. A sensação de desamparo é enorme: 21% das entrevistadas disseram não confiar na polícia. Quase metade das vítimas de violência tentou resolver o problema sozinha ou, no máximo, pediu ajuda a familiares e amigos. Um dos motivos que inibem a procura por ajuda qualificada, segundo o estudo, é a percepção de que não existe uma rede pública de acolhimento.
Em média, uma brasileira é assassinada a cada sete horas
A secretária nacional de Combate à Violência Contra a Mulher, Denise Dau, avalia que um dos desafios é melhorar a capacitação dos agentes de segurança pública, para que as mulheres se sintam mais confiantes de pedir ajuda. Em parceria com o Ministério da Justiça, ela tem planos de expandir a Patrulha Maria da Penha e de aperfeiçoar o treinamento dado aos policiais civis e militares. Todos eles, não somente aqueles que atuam em delegacias especializadas no atendimento às mulheres. “Muitas brasileiras se queixam de atendimento inadequado quando procuram a autoridade policial. Esses profissionais precisam estar preparados para compreender melhor a violência de gênero, ter domínio da legislação e saber qual é o encaminhamento adequado para a vítima.”
A secretária atribui o aumento da violência contra a mulher a diversos fatores, inclusive à propagação do discurso de ódio e intolerância nas redes sociais e por políticos da extrema-direita. “Esse ambiente misógino, somado ao corte de investimentos nas políticas públicas, teve enorme repercussão nos estados e municípios, onde funcionam os serviços de acolhimento às vítimas de violência. Quando o governo federal não valoriza essas políticas, isso tem um impacto direto na vida das mulheres.”
Nos últimos quatro anos, os recursos destinados à proteção das mulheres foram reduzidos drasticamente. Em 2022, foram destinados apenas 5,1 milhões de reais para o enfrentamento da violência e a promoção da autonomia feminina. Outros 8,6 milhões foram aplicados nas Casas da Mulher Brasileira, equipamentos destinados não apenas ao acolhimento das vítimas, mas também ao assessoramento jurídico e à assistência médica e psicológica. A secretária revela que o orçamento aprovado para este ano é maior, soma 23 milhões de reais. Ainda assim, o valor é insuficiente para dar conta da demanda nos municípios, lamenta.
A deputada federal Érika Kokay, do PT, afirma que “as mulheres foram tiradas do orçamento” durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Segundo ela, nem mesmo a Câmara Federal é um lugar seguro. “Nós, parlamentares mulheres, sofremos diariamente com a violência política de gênero no exercício dos nossos mandatos. É como se eles quisessem dizer o que nós podemos ou não falar, como devemos agir, o que temos de vestir. Esse processo de subalternização e de domínio se revela em uma forma de violência, em uma morte simbólica, eu diria.”
Já a deputada estadual do Rio Grande do Sul Sofia Cavedon, também do PT, explica que a rede de acolhimento às mulheres não pode ser pensada apenas no âmbito da segurança pública. “Ao transformar o Bolsa Família em Auxílio Emergencial, por exemplo, muitas mulheres perderam autonomia. Além disso, os equipamentos públicos municipais perderam um contato importante com as famílias para o diálogo. Para garantir que as mulheres se sintam acolhidas pelo Poder Público, é preciso garantir alguma perspectiva, moradia digna, acesso à educação e trabalho”, enumera. “Só assim uma mulher consegue desvencilhar-se de um ambiente de violência.” •
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem razões para celebrar’
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