Cultura
A vida de um homem comum
Ao narrar a história do pai, um caminhoneiro nascido no interior paulista, o sociólogo José Henrique Bortoluci decifra um pouco da formação do Brasil


Como se narra a vida de um homem comum?, pergunta José Henrique Bortoluci no primeiro capítulo de O Que É Meu, sua ruidosa estreia literária. Lançado na quinta-feira 9, o livro já tem garantida a tradução para dez idiomas por editoras de prestígio internacional e vem rendendo ao autor convites para muitas entrevistas – uma delas para o programa Conversa com Bial, da TV Globo.
Formado em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e doutor em Sociologia pela Universidade de Michigan, Bortoluci é professor da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, e realiza pesquisas na área de justiça climática e democracia. A centelha para a escrita de O Que É Meu surgiu no fim do seu pós-doutorado, que coincidiu com um momento grave: a pandemia.
“Ali entendi que a escrita acadêmica não me bastava mais. Havia um descolamento entre o que eu lia e escrevia”, diz o autor, na entrevista a CartaCapital, via Zoom. “Além de querer escrever algo diferente do habitual, eu achava que tinha de contar a história de meu pai e, com isso, narrar uma possível história do Brasil. Senti ainda que este livro tinha de existir por causa do momento histórico que atravessávamos.”
No mesmo dia que conversou com o pai sobre o desejo de ouvir suas memórias e torná-las narrativa, soube que ele vinha sentindo dores muitos fortes. Pouco depois, foi diagnosticado o câncer que acabou por tornar-se também material literário. O autor repete, no livro e na entrevista, que escreveu entre duas devastações: a do País, pelo governo Bolsonaro, e a do pai, pela doença. “Mas não foi um sofrimento escrever o livro”, diz. “Foi muito mais uma maneira de lidar com o sofrimento, pessoal e coletivo.”
O personagem central do livro é José Bortoluci, descendente de imigrantes vindos de uma empobrecida zona rural italiana em fins do século XIX, início do século XX, e nascido na zona rural de Jaú, cidade do interior de São Paulo, em 1954. Quinto filho de uma família de nove irmãos, ele estudou até a quarta série, começou a trabalhar no sítio aos 7 anos e, aos 22, tornou-se caminheiro.
Em Jaú, todos o chamam de Didi, mas na estrada ele era o Jaú, conta-nos o filho, que relata ter assistido ao lado do pai à paralisação dos caminhoneiros em 2018 – em 2022, os bloqueios seriam reeditados para contestar a vitória de Lula nas eleições.
Não há quase nenhum registro escrito desses cinquenta anos de estrada – apenas dois cartões-postais enviados à minha mãe e algumas notas fiscais amareladas na gaveta (…) O que fazer com as palavras do meu pai? Como ouvi-las, transcrevê-las, reorganizá-las sem que percam sua consistência e suas cores?
A empreitada de transformar a vida em literatura teve, desde o início, o apoio da editora Rita Mattar, que estava então, com os dois sócios, abrindo a Fósforo. Bortoluci havia feito contato com Rita porque desejava publicar sua tese de doutorado, sobre movimentos de moradia e a habitação popular. Na conversa, ele partilhou sua ideia de recuperar a trajetória do pai. Chegaram à conclusão de que a tese não cabia no catálogo da editora, mas essa outra história, sim.
O Que é MEU. José Henrique Bortoluci. Editora Fósforo (144 págs., 59,90 reais) – Imagem:
Além das muitas conversas informais e das memórias familiares, Bortoluci usou, como matriz, seis longas entrevistas gravadas em janeiro e fevereiro de 2021. No redemoinho do fazer literário, adotou três vozes: a do pai; a do filho, espelho da primeira; e a do sociólogo, muito presente, por exemplo, no capítulo sobre a destruição da Amazônia.
“Na construção dessas vozes, uma coisa muito importante para mim foi a cadência”, diz, tateando as questões da forma. “Fui tentando, nas várias releituras do texto, achar um ritmo com o qual eu me identificasse. Isso foi me distanciando de uma escrita mais seca, mais sociológica. O maior desafio da escrita foi, talvez, achar o ritmo da primeira voz do meu pai.”
E o ritmo é aquele da oralidade – ou daquilo que a escritora Conceição Evaristo chama de “escrevivência”. O que é meu é tudo aquilo que eu vi e gravei na memória (…) O que é meu só eu posso enfrentar, diz Didi, ou Jaú, nos trechos que acabaram por dar título ao livro.
Mas O Que É Meu constitui-se também daquilo que é de José Henrique. O caminhão trazia meu pai, roupas sujas e pouco dinheiro. A privação financeira; o projeto de ascensão social que atravessava gerações sem se concretizar; a saúde debilitada pela estrada, pelo álcool e pelo cigarro; o Brasil grande percorrido e devastado em nome do “progresso”; e a janela para outra vida, aberta pela educação, são alguns dos temas a atravessar esse impressionante registro a um só tempo coletivo e íntimo.
Bortoluci recorda, durante a entrevista, que estava no segundo ano do Ensino Fundamental quando uma professora, Marlene, chamou sua mãe – que havia estudado até a terceira série – para dizer-lhe que seu filho deveria ir para a faculdade. Dirce, a mãe de Bortoluci, respondeu que a família não teria dinheiro para isso. “E aí essa professora explicou para a minha mãe que existia a universidade pública”, relembra.
Brilhante nos estudos desde pequeno, Bortoluci sempre teve grande apoio dos pais que, mesmo não entendendo muito bem as aventuras acadêmicas nas quais se metia, não só enchiam o peito de orgulho como faziam de tudo para torná-las possíveis. No Ensino Médio, ele foi convidado para participar de um evento de jornalismo, na Grécia, e tudo era pago pelos organizadores, menos as passagens. “Meu pai passou o chapéu com os amigos, fez rifa”, diz, sorrindo.
Tanto autobiografia quanto biografia de um homem comum e de uma classe social, O Que É Meu comove na mesma medida em que nos ajuda a decifrar o Brasil. •
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida de um homem comum’
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