Economia
A reforma dos 99%
As mudanças no sistema tributário brasileiro devem priorizar a redução das desigualdades


Uma reforma tributária que “tire dos ricos para dar aos pobres” é um dos temores de Abilio Diniz, sócio e conselheiro do Grupo Carrefour. O receio de Diniz foi compartilhado em concorrido evento promovido por um banco de investimentos no fim de janeiro, todos interessados em ouvir a opinião do empresário com um patrimônio estimado em 14 bilhões de reais pela revista Forbes Brasil. Embora a reforma tributária seja a agenda política mais importante do País hoje, o debate sobre seus contornos é dominado por um grupo restrito de sobrenomes: Diniz, Lemann, Menin, Safra, Telles, Sicupira, Trajano etc. Em uma matéria tão fundamental para o conjunto da nação, como fica a opinião dos Silvas?
Um Silva tem apontado a diretriz a nortear a reforma tributária. “Todo mundo sabe que é preciso fazer uma política tributária nova, é preciso fazer com que pessoas mais ricas paguem mais impostos do que os pobres, porque hoje os pobres comparativamente pagam mais imposto do que os ricos”, afirmou Lula da Silva ainda no início de janeiro. Muitos outros Silvas compartilham desse entendimento: 85% dos brasileiros apoiam o aumento de impostos para pessoas muito ricas para financiar políticas sociais, segundo pesquisa da Oxfam Brasil/Datafolha de 2022. E 83% apoiam o aumento de impostos para quem ganha mais de 40 mil reais por mês para reduzir impostos sobre o consumo, a impactar os mais pobres.
Nesse sentido, os brasileiros estão em sintonia com o que ocorre em países vizinhos, como Argentina, Chile, Colômbia e Peru, dedicados ao debate de reformas tributárias progressivas. Novamente, a proposta em discussão no País foca na necessidade de simplificação do imposto sobre consumo, cuja aprovação tem sido prometida para o primeiro semestre de 2023. Não faltam declarações e análises buscando tranquilizar o mercado sobre a ênfase na reforma “que importa”, a do IVA, deixando para um segundo momento mudanças em impostos sobre a renda e o patrimônio.
Uma reforma tributária alinhada com os anseios da maioria da população deve ser guiada pela diminuição da carga de impostos sobre o consumo e pelo aumento de impostos sobre renda e patrimônio. Tem de priorizar a redução das desigualdades, reequilibrando a contribuição com impostos no País, para reforçar a capacidade do Estado brasileiro de oferecer serviços públicos de qualidade para toda a população.
Hoje, o debate é dominado por um grupo restrito de sobrenomes: Diniz, Lemann, Menin, Safra… Como fica a opinião dos Silvas?
Alterações no imposto sobre o consumo são necessárias, mas insuficientes, e devem ser realizadas em conjunto com outras medidas que enfrentem as desigualdades e injustiças do atual sistema. A reforma tem de atacar as desigualdades na base, diminuindo o peso relativo dos impostos indiretos, de caráter regressivo, sobre a maioria da população. Além disso, tem ainda de promover uma tributação forte sobre produtos que prejudicam a saúde e o meio ambiente, como tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e combustíveis fósseis.
Uma reforma tributária que realmente contribua para a redução das desigualdades precisa: 1. Corrigir urgentemente a faixa de isenção do Imposto de Renda e criar novas alíquotas acima do teto de 27,5% hoje existente, além de restabelecer o tributo sobre lucros e dividendos, aproximando os parâmetros de taxação entre renda e capital. 2. Reduzir as assimetrias existentes no Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) entre micro, pequenas e médias empresas, de um lado, e grandes empresas de outro, por meio do fim dos juros sobre capital próprio e ampliação da progressividade na tributação de pessoas jurídicas. 3. Aprimorar a eficiência da cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR), com o fim da natureza autodeclaratória e a criação de mecanismos de combate à sonegação, inclusive por meio de georreferenciamento. 4. Regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), focado nos muito ricos (0,1% do povo). Não há justificativa moral ou jurídica para adiar o debate.
Essas medidas não têm como objetivo central o aumento da carga tributária, e sim a sua redistribuição de acordo com a capacidade de cada cidadã e cidadão de pagar o devido imposto. Hoje, a maioria da população paga mais, proporcionalmente, do que os mais ricos do País. Essa situação é injusta e insustentável. O atual sistema tributário agride princípios fundamentais da Constituição, que, em seu artigo 3º, determina “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais”. Do jeito que está hoje, ele faz justamente o contrário: aprofunda as desigualdades e sabota os objetivos fundamentais da República.
Toda e qualquer proposta de reforma tributária a ser aprovada pelo Congresso Nacional tem de atender à Constituição brasileira e, assim, ser peça fundamental na redução das desigualdades e no reforço da capacidade do Estado de construir e oferecer serviços públicos de qualidade – principalmente depois de dois anos de pandemia de Covid-19, que deixou milhões de brasileiras e brasileiros em situação de alta vulnerabilidade. “Meu receio é uma reforma do tipo Robin Hood”, revelou o empresário Abilio Diniz. Uma reforma tributária que ceda a esse medo elitista representará uma derrota para 99% da população brasileira. •
*Katia Maia é diretora-executiva da Oxfam Brasil. Jefferson Nascimento é oordenador da área de Justiça Social
e Econômica da mesma instituição.
Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A reforma dos 99%’
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