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Lavoura em chamas

Agricultora palestina relata os pavorosos ataques promovidos por colonos israelenses em seu vilarejo, na Cisjordânia

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Sem rancor. “Veja, eu não odeio Israel, quero uma solução de dois Estados”, escreve a olivicultora Doha Asous – Imagem: Jaafar Ashtiyeh/AFP e Zaytoun CIC
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Assim que deixei Burin no domingo passado, pegando vários ônibus para Amã, na Jordânia, antes de um voo para Londres, recebi notícias sobre violência e tiroteios em várias aldeias, incluindo a minha, que fica ao sul da cidade de Nablus. O centro dos ataques foi na vizinha Huwara, onde cerca de 400 palestinos foram feridos por colonos israelenses. Mas Burin também foi atingida. Casas e carros foram queimados, pedras foram atiradas e algumas de nossas cabras, mortas ou roubadas. Os ataques continuaram desde então, embora, felizmente, não tão graves.

Infelizmente, isso não é novidade, embora a intensidade nos últimos dias tenha sido realmente assustadora. Moro em ­Burin desde que nasci, há 61 anos, trabalhando como agricultora na maior parte desses anos em plantações que herdei de meu pai, além de outras que minha família comprou desde então. Meu pai foi morto na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e seu corpo foi levado de volta a Burin para ser enterrado.

Minha aldeia se situa em um vale, hoje cercado em três lados pelos assentamentos israelenses ilegais de Yitzhar, Har Bracha e Givat Ronin. Essas cidades no topo da colina pairam sobre nós à medida que ficam cada vez maiores e mais ameaçadoras. Os colonos, muitos deles americanos, são extremistas que simplesmente querem a nossa terra e até nos destruir. Isso foi o que eu soube depois de falar com minha filha na noite da quarta-feira 2. Ela me contou como Bezalel ­Smotrich, ministro de Israel para Assuntos Civis na Cisjordânia, havia dito que queria que Huwara fosse “eliminada”. Então, na noite de sexta, soube que os israelenses tinham colocado cartazes conclamando os colonos a “destruir” a cidade.

Isso é o que tememos. Veja, eu não odeio Israel, e quero uma solução de dois Estados. E certamente não odeio israelenses ou judeus. O problema são os colonos descontrolados, com o exército israelense, supostamente lá para nos proteger, geralmente fechando os olhos.

Cuido de cerca de 700 oliveiras ao redor do vale. Mas eu e outros donos de pomares perdemos cerca de 70% deles nos últimos cinco anos. Alguns foram tomados por colonos. Outros simplesmente se tornaram impossíveis de cultivar. Estes são nossos pomares em nossa terra ancestral, mas temos de pedir permissão às autoridades israelenses para cultivá-los e colhê-los. Acredite ou não, durante a colheita de azeitonas no outono passado, em alguns dos meus olivais recebi permissão para colher durante apenas dois dias, quando precisava de duas semanas.

No dia em que começamos, 1º de novembro, os colonos começaram seus ataques. No dia seguinte, fui procurar e descobri que haviam arrancado árvores, algumas com centenas de anos. Outras foram cortadas nos troncos com os ramos de azeitonas retirados.

De vez em quando, o autodenominado chefe de segurança de Yitzhar dirige seu carro enorme até meus campos para me dizer que eles “pertencem ao seu povo”. Às vezes tento conversar, mas sem sucesso.

Esses ataques durante a colheita, infelizmente, não são novos. É assim todos os anos, embora voluntários internacionais venham regularmente para ajudar na colheita e também atuar como uma presença protetora. Mas até eles foram atacados. Há sete anos, um inglês idoso foi apedrejado e teve de ser levado ao hospital, enquanto outros, desde então, ficaram feridos.

Esses assaltos não acontecem apenas durante a colheita. Nossa aldeia é regularmente saqueada, principalmente nas noites de sábado, pelos jovens dos assentamentos. É um esporte para eles. Nossa escola e a faculdade agrícola também foram danificadas, enquanto a queima de carros é tratada como brincadeira. E há mais coisas que temos de suportar, pois agora também contamos com menos água para ajudar a nutrir as nossas árvores – justamente quando o clima está em crise. Os israelenses, que controlam 85% de nossa água, cortam regularmente o abastecimento. Israel acumulou, porém, reservas de água para 30 anos.Doha Asous

“Nossa aldeia é sempre saqueada pelos jovens dos assentamentos judaicos. É um esporte para eles”

Apesar de tudo, quero continuar na terra, em memória de meu falecido pai. É pelas crianças e os jovens que sinto, especialmente. O futuro deles não é seguro. Esse cenário também os está afetando psicologicamente, com muitos sofrendo de problemas de saúde mental. Há uma alta taxa de evasão entre os meninos em nossa escola secundária. É semelhante em muitas outras aldeias e cidades próximas – com os palestinos despejados ou simplesmente partindo, em desespero, para viver em outros países.

Por estar agora na Grã-Bretanha, sinto-me encorajada para contar às pessoas sobre os nossos produtos e lhes dar algumas dicas sobre a nossa maneira de cultivar. Tenho dado palestras em vários países para mostrar como os nossos produtos são obtidos de forma ética e ambiental. Estamos vendendo por meio de uma empresa britânica, a Zaytoun, que significa “azeitona” em árabe. Eu amei o acolhimento que tive aqui. É pena que, embora meu corpo esteja na Grã-Bretanha, minha mente ainda está em Burin. •


*Doha Asous é uma olivicultora de um vilarejo perto de Nablus, na Cisjordânia ocupada. Ela estava no Reino Unido para a Quinzena do Comércio Justo para falar sobre agricultura na Palestina e promover produtos locais – azeitonas e seu óleo, além de outros alimentos típicos, como tâmaras. Neste relato ao Observer, ela descreve a vida em sua aldeia durante a recente violência entre moradores palestinos e colonos judeus.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lavoura em chamas’

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