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Luto furioso

Após o desastre de trem que matou 57 passageiros, a população revolta-se com a negligência das autoridades gregas

Luto furioso
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Indignação. Em Atenas, manifestantes exigem respostas sobre o desvio de rota que levou o trem a colidir de frente – Imagem: Louisa Gouliamaki/AFP
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Primeiro veio o luto, depois a entrega dos entes queridos, por fim os funerais. Na sexta-feira 3, Athina Katsara, jovem mãe de uma criança pequena, foi carregada num caixão branco da igreja de Katerini no funeral do primeiro “anjo” a encontrar a morte no pior acidente de trem da Grécia. No dia seguinte, familiares e amigos se despediram de Ifigênia Mitska, de 20 e poucos anos, como tantas das 57 vítimas do desastre. Ela também foi enterrada num caixão branco lacrado no norte de Giannitsa.

Na sequência, outras vítimas – todas identificadas por meio de amostras de DNA – seriam sepultadas ao término de um luto oficial de três dias para a nação, mas apenas o início de uma profunda tristeza para as famílias envolvidas. Desde que o Intercity 62, viajando de Atenas para Thessaloniki com ao menos 350 passageiros, colidiu de frente com um trem de carga em sentido oposto no mesmo trecho, a Grécia foi lançada em luto, lamentando “uma tragédia inimaginável”, nas palavras de seu presidente.

A maioria dos mortos era de estudantes universitários no auge da vida, voltando para casa de um feriado que marca o início da quaresma ortodoxa. O impacto do acidente, perto da cidade de Tempe, na Tessália, foi tal que equipes de resgate vasculharam o local na semana passada para encontrar os restos mortais das vítimas que se acredita terem morrido em temperaturas que ultrapassaram 1.300°C, quando os vagões explodiram em chamas. Os corpos recuperados estavam invariavelmente carbonizados e irreconhecíveis. Dos 66 feridos, mais da metade permanece no hospital, seis deles em aparelhos de suporte vital. Os sobreviventes descreveram como foram ejetados pelas janelas e lutaram em meio à fumaça acre e às chamas para saltar dos vagões descarrilados depois do choque.

Poucos acidentes ferroviários na Europa na memória recente foram tão graves, poucos foram sentidos tão amplamente (a Albânia e Chipre, que também perderam cidadãos, estiveram em luto oficial no fim de semana) e nenhum até hoje provocou tanta raiva ou questionamento entre os gregos. Na era moderna de locomotivas eletrificadas e sistemas de segurança automatizados, a questão primordial é: “Por quê?” É algo que tem sido cada vez mais dirigido ao governo, enquanto manifestantes tomam as ruas.

“Estamos, em toda a sociedade, no meio de uma dor furiosa”, diz a professora Fotini Tsalikoglou, uma das mais importantes acadêmicas de Psicologia da Grécia. “É uma tragédia que fez as pessoas se sentirem vulneráveis e desprotegidas. Há uma sensação generalizada de que poderia ter sido qualquer um de nós.”

O premier Mitsotakis fala em um “trágico erro humano”, mas há tempos ferroviários fazem alertas sobre as deficiências do sistema

Para ela, a maneira horrível como os passageiros morreram, sem que os parentes e amigos pudessem se despedir dos entes queridos, tornou ainda mais difícil aceitar a perda de vidas, no que se considera um acidente que poderia ter sido evitado. “Rituais existentes desde os tempos de Homero, que nos ajudaram a dar sentido à morte, tornam-se impossíveis quando não há vestígios dos mortos, ou há poucos. É como se não existisse uma vida”, observa Tsalikoglou ao Observer. “Todo mundo se identificou com isso.”

Antes mesmo de a maioria das vítimas nascer, os sindicatos ferroviários já tocavam o alarme. As advertências se intensificaram após a privatização da empresa, como parte do desmembramento de ativos durante a crise da dívida do país. Apenas 20 dias antes da colisão, a federação de trabalhadores ferroviários aposentados havia alertado sobre os perigos inerentes a um sistema operando a vazio.

Na semana anterior, citando salvaguardas insuficientes, sinalização inadequada, funcionários sobrecarregados e falta de treinamento, os sindicatos previram que era apenas questão de tempo para que outro acidente ocorresse se “as agências responsáveis conscientemente optassem por ignorar nossas demandas e advertências que remontam a anos”.

Suas preocupações ecoam em outros lugares. Com a rede contando com funcionários trabalhando manualmente, geralmente por meio de walkie-talkies, o sistema há muito é considerado o mais mortal da Europa. O departamento de estradas e ferrovias da Grã-Bretanha o descreveu recentemente como o maior nível de risco para passageiros no continente.

Se os procedimentos de segurança, conhecidos coletivamente como sistema europeu de controle de trens, tivessem sido instalados – como planejado há três anos –,­

os especialistas estão convencidos de que a tragédia poderia ter sido evitada, porque a frenagem automática e outras medidas de segurança teriam entrado em ação. Mas a autoridade do governo que supervisionava o contrato renunciou no fim do ano passado, decepcionado com o que foi descrito como “atrasos injustificáveis”.

A mudança ocorreu em meio a murmúrios de corrupção no Ministério dos Transportes, departamento encarregado de lidar com grandes projetos financiados pela União Europeia. Na quarta-feira 1º, o ministro dos Transportes anunciou que assumiria a responsabilidade política e renunciaria, reconhecendo que os esforços de reforma do governo de centro-direita falharam. Na ausência de controles, o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis culpou o desvio do trem de passageiros para a via errada a um “trágico erro humano”. E com seu mandato de quatro anos chegando ao fim com as eleições previstas para esta primavera, ele prometeu que “as responsabilidades serão atribuídas”.

As locomotivas viajaram pela mesma linha férrea durante cerca de 15 minutos antes de colidirem às 23h23 da terça-feira 28. O chefe da estação em Larissa, o principal entroncamento pelo qual o trem de passageiros passou, poderia ter evitado o acidente se tivesse feito a mudança de ponto correta. O homem de 59 anos, que admitiu o descuido de acordo com seu advogado, testemunhará perante um magistrado depois que o advogado, solicitando um adiamento de 24 horas, disse terem surgido novas evidências.

Em meio à raiva e à dor, os gregos não estão dispostos a aceitar que um homem seja culpado por um sistema que nunca deveria colocar tal responsabilidade sobre um único indivíduo. “Somos todos humanos e todos cometemos erros”, afirma Alexis ­Pappas, de 25 anos, ao participar de um protesto inflamado na Praça Syntagma, no centro de Atenas. “Não somos máquinas, mas temos máquinas que deveriam ter sido usadas. O que aconteceu é um grande crime. Companheiros gregos foram assassinados. O governo tem de nos dizer por quê. Alguém tem de pagar o preço.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Luto furioso’

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