

Opinião
A desigualdade no cárcere
Sem definir critérios objetivos para a distinção entre traficantes e usuários, a Lei de Drogas legitima os vieses de classe, raça e gênero das autoridades do Estado


O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. Grande parte encontra-se em prisão temporária ou preventiva, esperando julgamento por anos a fio, em condições desumanas. Em recente entrevista concedida a Breno Altman, o ministro da Justiça, Flávio Dino, causou perplexidade entre especialistas ao negar que a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) tenha relação com o superencarceramento.
Diante da declaração, Altman perguntou o que poderia então explicar o aumento vertiginoso da população carcerária – que, em sua maioria, responde por tráfico de drogas. O jornalista lembrou que nenhum outro país passou por tal explosão: em 15 anos, passamos de 240 mil para mais de 800 mil encarcerados. Dino respondeu que o encarceramento teria aumentado com ou sem essa lei, pois a legislação anterior já punia o consumo de drogas ilícitas.
É verdade que a penalização já existia, mas o ministro deixou de considerar que a lei de 2006 aumentou as punições para traficantes e reduziu as penas para usuários sem definir critérios objetivos para separar uns dos outros. A decisão fica a cargo do juiz e, portanto, também da autoridade policial que decide, no calor do momento, que situações da vida real devem virar um flagrante lavrado, um suborno nas sombras ou uma viagem só de ida para a vala.
Uma pessoa negra detida numa favela com alguns gramas de maconha tem enorme chance de ser presa como traficante, enquanto uma pessoa branca encontrada num bairro rico com grandes quantidades da mesma droga provavelmente se livrará com uma propina ou será enquadrada como usuária. Em outras palavras, a subjetividade da distinção entre usuários e traficantes legitima os vieses de classe, raça e gênero das autoridades do Estado.
É compreensível que o governo não queira mexer nesse vespeiro agora, pois o golpe fracassado de 8 de janeiro ainda não esfriou no túmulo. Mas isso não deve implicar licença para negar fatos. Se é verdade que o encarceramento de homens já aumentava antes da lei de 2006, o de mulheres disparou após a sua promulgação. Hoje, mais de 60% das presas respondem por tráfico e, via de regra, foram flagradas ao levar drogas para seus companheiros nas prisões. Muitas vezes nem regressam a seus filhos. São enquadradas com penas longas que desestruturam ainda mais as suas famílias.
Precisamos urgentemente compreender que a proibição arbitrária de certas drogas é mais tóxica do que qualquer droga em si. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência posiciona-se, desde 2018, pela legalização e regulamentação de todas as drogas, por compreender que a guerra contra elas é anticientífica, ineficaz e injusta. Tem, além disso, custo altíssimo para a sociedade, como demonstra a pesquisa Drogas: Quanto Custa Proibir, coordenada pela socióloga Julita Lemgruber no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
As cadeias estão lotadas de jovens que deveriam estar estudando ou trabalhando, e não amontoadas em condições degradantes. Em sua pesquisa de mestrado sobre o Conjunto Penal Feminino de Salvador, a professora Carla Akotirene, da Universidade Federal da Bahia, demonstrou que as detentas, “majoritariamente pobres, negras, semialfabetizadas, presas por tráfico de drogas (…) são submetidas a situações de constrangimento, perda da privacidade, péssimo atendimento médico, violência psicológica e moral”. Sofrem ainda com a intolerância a religiões afro-brasileiras e com a lesbofobia.
É, evidentemente, bom que o ministro da Justiça reconheça que no Brasil “se prende muito e se prende mal, porque se prende com desigualdade”. Entretanto, ainda que assuma o viés de classe do sistema judiciário, falta a Dino reconhecer que a Lei nº 11.343/06 abriu o flanco para que preconceitos destruam pessoas vulneráveis.
O problema é aprofundado pelo jurista Cristiano Maronna no livro Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade” (Contracorrente, 2022), que disseca os 75 artigos da Lei de Drogas para explicitar seus mecanismos perversos. Ela permitiu, por exemplo, que a polícia de Olinda tentasse prender, durante o Carnaval, as coordenadoras da Escola Livre de Redução de Danos, Ingrid Farias e Priscilla Gadelha, enquanto atuavam pela conscientização sobre os perigos do uso excessivo de álcool e outras drogas.
Mantida essa legislação, resta ao Ministério da Justiça o estigma da injustiça. Que o debate avance até alcançarmos a liberdade, definida por Cecília Meireles como “palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A desigualdade no cárcere”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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